31.10.08

promiscuidade tipográfica


Uma coisa que determinei empiricamente e que Alex White determinou em percentagem, é que quem trabalha no campo da tipografia, trabalha em 90% com o espaço. Ora aí está (mais) um conceito que pode ser objecto de um doutoramento. A questão do espaço em tipografia é deveras muito importante e chega a sobrepor-se às outras categorias. Porque digo isto? Imaginemos uma composição de texto. Ao contrário do se possa supor, não se resolve a formatação de um texto com a escolha do "typeface" certo. Como já defendi anteriormente, um typeface como a Helvetica ou Univers não são desenhos de letra com propriedades intrínsecas de leitura extensiva, (se bem que Tschichold assim o defendeu, quando utilizou a Univers na composição do sua obra Die Neue Typographie. No entanto, o mesmo autor mais tarde reconheceu a validade da composição clássica quando desenhou o famoso typeface Sabon, e redesenhou a grelha de paginação para a Penguin Books. O que posso constatar com todas as minhas leituras, é que quanto mais nos envolvemos com a tipografia, mais valorizamos a natureza literária clássica), na verdade, podemos colmatar as falhas de legibilidade com ajustes de espaço, quer microscópica, quer macroscopicamente. Espaçamento refere-se a gestão de espaço, mas no campo específico da tipografia, falamos de "espacejamento"; e são muitos os items relacionados com este campo.
Eu gosto de aplicar figuras de estilo na expressão dos pensamentos, porque ajuda a materializar o que às vezes aparenta ser demasiado abstracto ou filosófico, e será talvez interessante olhar para o texto sob um ponto de vista sociológico: se considerarmos as letras como membros de uma sociedade, em que todos interagem e se influenciam, então estaremos a ver as letras como indivíduos que se "relacionam" no espaço de uma página, e são essas relações que devem ser trabalhadas para que tudo flua com harmonia. Pensamento estranho? Vejamos porque poderei comparar as coisas dessa forma.
Todos somos diferentes, e possuímos características diferentes e isso faz com que as relações que temos com os outros passem por uma negociação de afinidades e atributos, de complementaridade e aversões, e isso afecta directamente a distância e o "espaço" entre nós e os outros. Pois bem, assim são as letras. Apesar de dentro de uma família tipográfica existirem pontos comuns como a espessura, modulação, eixo, as letras são muito diferentes e para existir harmonia entre as formas, precisamos trabalhar o seu espaço visual. Fala-se de ritmo, espaço padrão, intrínseco à metrica de cada typeface, mas as letras existem enquanto membros de um todo. Se quisermos associar isto à perspectiva Gestalt, o todo não se trata da soma das partes, todavia, é trabalhando essas partes que obtemos um resultado final. O "espaço padrão", definido pela largura do bloco do tipo de chumbo, era determinado pelas extremidades horizontais das letras e era tecnicamente impossível que as formas se conjugassem. Hoje existe o "tracking negativo", porque as fontes digitais dos typefaces e o software de "desktop publishing" permitem o que o metal não permitia. No entanto, o tracking é um espacejamento global, que gere as propriedades gerais de espaço entre caracteres, e palavras, num eixo horizontal. Existe, porém, uma excepção à regra. Com o aparecimento do estilo itálico, surge também um novo constrangimento na composição. O eixo oblíquo, e o alongamento das formas das letras criaram aquilo que se designa por "kern", ou seja, uma invasão de um espaço de uma letra, por outra. Curiosamente, fez com que a "face do tipo" ultrapassasse os limites do bloco do tipo. Isto era necessário, para que as letras não parecessem desnecessariamente afastadas. Mas não só o itálico forçou este ajuste. Existem letras na vertente "romana" de um typeface que criam estas situações desagradáveis, porque possuem ritmos oblíquos que são acompanhados pela largura do bloco, como o par "Va", o que dava muitas vezes o resultado [V asto]. A gestão deste espaço entre caracteres, denomina-se por "kerning". O conflito entre as propriedades oblíquas e curvilíneas gera a necessidade de criar "pares" com espacejamentos específicos, mais adequados à harmonização das formas: os "kerning pairs". Posso concluir com esta observação que o resultado de espacejamento igual entre caracteres é apenas aparente, e que é a nossa percepção que determina essas "igualdades".
Falamos então de níveis de relações. Na psicologia social destingue-se bem a diferença entre um grupo e um conjunto de pessoas. Não é porque as letras estão todas emaranhadas numa folha de papel que existem como texto. É necessária uma ordem, contexto, ritmo, materializada pela gestão do espaço. Uma patologia textual comum é a sobreposição das formas, em typefaces cujo desenho não esteja pensado para ser mais independente dos caracteres. Falo especificamente dos pares "fi", "fl", "fh". Existe e a tendência para a sobreposição do ascendente do "f" colidir com o ponto do "i", e com os ascendentes de letras como "l" e "h", provocando uma nota arranhada, que desafina com o resto da melodia tipográfica, e infelizmente, tornou-se muito comum com a exigência de best-sellers de edição rápida. Quando se dá esta ferida, nada melhor que uma "ligadura". A ligadura é, para mim, o kerning perfeito, a relação amorosa assumida entre dois caracteres, que se manifesta pela absoluta conjugação complementar das suas características, formando um só elemento. Nos primórdios da impressão, quando a composição era conseguida com aprumo, os caracteres "f" e "i" desapareciam, para ser utilizado o elemento ligadura "fi", que se adequava perfeitamente na harmonia do texto. Quando inicialmente falei de promiscuidade tipográfica, referia-me a esta relação prematura, conflituosa, em que existe a competição entre características formais dos caracteres. Tal como numa sociedade, existem pessoas com maiores afinidades do que outras, e é necessária a sua relação amistosa para que o texto seja harmonioso e pacífico. Essa paz reflecte-se no ritmo da leitura, e permite ao leitor construir com o texto a relação de amizade e envolvimento, que só tem consequências positivas no encaminhamento da mensagem e do seu conteúdo. É na harmonia que existe espaço para o diálogo e o entendimento.

9 comentários:

  1. observo que quando trabalho parte de umma correlação absolutamente coerente da entrelinha-corpo-margens e formato de papel (pensar em pontos faz a diferença) é possível conseguir o ajuste do crena mais próximo da perfeição.

    eu, por exemplo, parto sempre do tamanho da entrelinha. se é 15pt, só uso números múltiplos de 3 e 5 para a composição. depois, para ajustar a justificação, o entrepalavras deixo em 70%, 100% e 130%; o entreletras, -3%, 0% e 3%; glifos, em 98,75%, 100,1% e 101%. o ajuste é mínimo, e não me dá linha frouxa alguma.

    abraços!

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  2. Nem mais. Ao contrário do que se possa pensar, é precisamente aí que se deve começar. Não nos devemos, no entanto, esquecer do typeface em questão. Um exemplo? A Perpetua de Eric Gill. Tem uma proporção de ascendente/descendente em relação so corpo principal tão contrastante que pede uma entrelinha "sólida". Mas sim, depois da escolha do typeface e perceber as suas propoções, a entrelinha será a base para toda a composição. O exemplo que usou parece-me adequado e tenho de aceitar que 3% no espacejamento de caracteres é quase imperceptível, apesar de eu não gostar nada de desapertar as letras.
    Poderá também relacionar a baseline grid nessa lógica. Tendo como exemplo uma relação base de 9/12pt, uma baseline grid adequada poderá ser de 4pt, ou no limite, de 2pt. Assim, para diversas hierarquias, poderemos ter relações 6/8pt, 9/12pt, 14/16pt (sabendo que quanto maior a escala, menor a entrelinha e o tracking)e todas as linhas baterão certo. Por isso sim, desde que haja uma relação de proporção, divisão ou multiplicação coerente,a composição será harmoniosa e menos problemática. Ainda assim, cuidado com a largura de coluna, porque obviamente afectará a justificação, o que me lembra que relacionar os ritmos horizontais com os verticais faz também sentido. Em publicações com várias colunas, é seguro também relacionar as distâncias das colunas com a entrelinha. Outro ponto que saliento é que se a altura de x do typeface seleccionado for aproximado da fracção de baseline grid que escolhemos, então o alinhamento das imagens também será mais fácil. Isto porque defendo que no topo as imagens devem alinhar com a altura de x da linha lexto e nos pés com a baseline. Finalmente, concordo que pensar em pontos (e tb em picas) faz toda a diferença e é exactamente assim que trabalho. Obrigado pelo testemunho, e bom trabalho.

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  3. não uso muito paicas, destarte o nome infeliz (picas!), mas por considerar a medida em pontos mais precisa. não sei se já leste o "a forma do livro", do tschichold. lá, ele diz que, ao fazer o famoso projeto para a Penguin, sofreu com a ausência do sistema decimal, tendo que muitas vezes usar medidas como a meia paica em seus cálculos. reconheço os méritos do mestre, mas, ora essa, sua sina teria sido muito abreviada se houvesse se baseado no ponto inglês, não?

    é necessário customizar o tracking de quando em quando, pois estamos compondo em português, e os algoritmos foram feitos para línguas simples quanto o inglês. em alemão, o tracking a 3% é excessivo; imagina a palavra "entschuldigung" a 3% de entreletra? mas, em português, quando raramente temos mais de 3 sílabas-letra, o ajuste é perfeitamente aceitável. experimenta.

    enfim, quero dizer que quanto mais contas fazemos, quanto mais proporções encontramos, quanto mais observações anotamos, salvamos tempo no resultado final, não tendo que caçar linhas-frouxas, por exemplo. e isso sem recorrer a hifenizações deselegantes, veja bem.

    a altura x é sim uma informação crucial para quem trabalha com o grid, e manter a coerência entre esta e a entrelinha fundamenta grande parte da beleza de uma mancha gráfica. eu pessoalmente uso bastante a Apollo, de Frutiger, pois gosto do seu aspecto diminuto. não aprecio muito a Perpetua; o desenho da cursiva me incomoda, principalmente os terminais em caixa alta. Essa inclinação acentuada, de quase 5º, somada, à patente alteração no olho da tipologia... para mim não está bom.

    cansei-me, por hora. até mais!

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  5. e quanto à largura da coluna, mais de 12 palavras em uma linha é um aborrecimento, e menos de 8, um acinte! cuidadinho!

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  6. Temos muitos "pontos" comuns, estou a ver. ;) Quando me referi à Perpetua, foi apenas para falar de proporção. Eu prefiro, de Gill, a Joanna, que ele usou no seu "Essay on Typography", embora ainda não tenha paginado com ela uma obra extensa. Já paginei, sim, em Apollo, e devo dizer que aprecio bastante, e gosto especialmente de a usar usando como complemento a Frutiger, que possui uma anatomia e propoções semelhantes. Concordo em absoluto que trabalhar com medidas coerentes poupa muito trabalho de acerto, assim como o uso de estilos (não vejo ninguém paginar sem recurso a um método sistemático de grelha e estilos(!)) e quanto às picas... Bringhurst refere-se a elas apenas para a largura da mancha textual. Sabemos que a pica são 12pt, mas é apenas essa a referência, não utilizo essa unidade. Em conclusão, muita gente não tem noção (como já vi o desabafo no teu blog) do trabalho que uma coisa destas envolve a nível quase microscópico, para que tudo acerte com harmonia no final. O trabalho editorial requer muita disciplina e metodologia rigorosa que muitos (até profissionais) negligenciam. Dominando estas ferramentas, no final resultará uma questão de preferência e opções estilísticas. Quanto às métricas... a questão do 3% é muito pertinente, da mesma forma que não utilizo texto em latim para fazer mancha. Pode ter sido a base linguística do português, mas os dissílabos e monossílabos do latim não ajudam a prever uma mancha portuguesa. Mas é sempre bom discutir estas coisas com quem sabe as dificuldades e ferramentas envolvidas nesta actividade. ;) Obrigado mais uma vez pela participação.

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  8. a informação que a Apollo compõe bem com a Frutiger tiraste de Bringhurst, que sei!

    quanto ao "A Forma do Livro", a edição em português de layout lamentável é da Ateliê Editorial, a R$ 69,00 (em torno de 20 euros, acho), em http://www.atelie.com.br/.

    exagero, claro. o livro é legível e resistente, a excelente tradução é do bibliófilo José Laurenio de Melo (http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=304&textCode=1376&date=currentDate), e a editora tem lá seus méritos, pois publicou, por exemplo, a tradução do "On Book Design", de Richard Haendel.

    quanto ao resto da biblioteca, temos no brasil a editora cosac naify (http://www.cosacnaify.com.br/intro.asp), que publica traduções excelentes, diga-se de passagem, de livros da Ellen Lupton, Timothy Samara, e o próprio Bringhurst. o catálogo de design editorial lá ainda é pequeno, mas a qualidade editorial é insuperável.

    se quiseres estudar o livro brasileiro (o que por aqui é expediente), a cosac tem uma edição maravilhosa de "o design brasileiro antes do design". enfim, até certo ponto a história dos dois países se mistura, e acho extremamente salutar chafurdar em investigações mais e mais aprofundadas a respeito da tradição tipográfica em língua portuguesa.

    desde já guardo seu blog nos meus favoritos. um abraço!

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  9. Obrigado pelas dicas. Um pequeno reparo: é sempre bom vermos que o que pensamos vai de acordo com os "mestres": Eu notei que havia uma relação anatómica entre os typefaces do Frutiger, assim como consegues encontrar semelhanças na anatomia de vários typefaces de um autor. Acho que por mais que ele se tente diferenciar, há premissas que se mantém. Compara por exemplo a anatomia da Méridien com a Univers, a Scala com a Nexus, ou (como também adivinhei que o Bringhurst apontou)a relação da Joanna com a Gill Sans, como se uma fosse a sans e a outra a parceira serif. Existem tiques estilísticos nos typeface designers que se topam para quem tem o olho aguçado ;). A propósito, tb te adicionei na minha lista de links do blog.

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