10.11.08

escrever direito por linhas tortas


Como já aqui expus antes, a tipografia é uma disciplina exercida de uma forma sistemática, metódica e rigorosa, e é necessária muita experiência e convivência com os problemas que se colocam na composição, para minimamente dominar esta que é considerada por alguns como uma arte (mas isso é outro assunto). Embora seja regida por semi-leis das ciências exactas, na prática vergam-se a um atributo humano: a percepção. São muitas as artimanhas que se utilizam para enganar o olho humano e, consequentemente, a apreensão do elementos gráficos que constituem a escrita. Sim, porque as letras não deixam de ser signos, símbolos que tiveram origens (não só) iconográficas, mas que se foram aperfeiçoando, atingindo um patamar de abstracção tal que hoje são formas independentes, relacionadas com fonemas, constituindo peças deste puzzle tão complexo que é a linguagem verbal.
É sabido que (para leitores com alguma experiência) a leitura não é conduzida letra a letra, mas através da mancha visual que esta produz, razão pela qual muitas vezes as “pequenas dislexias” nos poderão passar despercebidas e saltamos os erros, sem interromper a leitura. Talvez seja por isso que os erros ortográficos são detectados, uma vez que a métrica de uma palavra como ‘mexer’ é alterada, quando escrita ‘mecher’. Detectamos algo de estranho na “mancha da palavra” numa primeira observação, depois será a ortografia e a memória da aprendizagem que entra em funcionamento. Mergulhando um pouco na forma que constitui essas manchas, ao pequeno detalhe do desenho de letra, reparamos que as coisas não são assim tão matemáticas como julgávamos. Para além dos ritmos horizontais das letras serem diferentes, as alturas são também desiguais. Não falo apenas dos ascendentes e descendentes das letras minúsculas, mas da influência de outros ritmos que perturbam esta percepção, e que nos obrigam a utilizar alguns truques visuais. Falo dos ritmos oblíquos e curvos. Isto remonta aos estudos das formas geométricas puras, da Bauhaus: o triângulo, círculo e quadrado. Partindo destes como referência, poderemos encaixar as formas dominantes das letras nestas categorias tendenciais. Um “v”, um “A” entrarão na categoria dos oblíquos triangulares, os “n” e “x” nos quadrados, os “o”, “c” nos circulares. Existe depois uma complexificação que resultará na adição de características, que tornam as letras “híbridas”, como é o caso de “N”, “a”, “g”, “m”, etc. Não é necessário recorrer aos estudos de Dürer ou dos seus contemporâneos renascentistas para perceber que as letras maiúsculas possuem alguns critérios diferentes de análise, na medida em que estas aparentam ser mais autosuficientes, que poderão ser inscritas nas formas geométricas base de uma forma mais directa, como é o caso do quadrado, que unclausura a forma do ‘“M”, que deu origem ao termo “Em”, ou quadratim. Ainda que exista a necessidade de resolver alguns conflitos de forma como o par “VA”, que necessitam de algum kerning, é mais fácil trabalhar as maiúsculas que as minúsculas. Quando nos referimos a estas, é necessário introduzir os conceitos de “altura de x”, “linha mediana” e “baseline”, ou linha de base. Isto porque no caso de um texto extensivo e segundo os parâmetros “normais” de escrita, em que provavelmente 90% dos caracteres serão minúsculos, o ratio de existência de ritmos ascendentes e descentes será inferior à presença de mancha da linha de base (baseline) à altura de x delineada pela “linha mediana”. Quer com isto dizer que a questão da linha imaginária central se situa sensivelmente a meia altura de x. Desfocando propositadamente a visão, a percepção das manchas horizontais situam-se nesta zona e será com esta referência visual que devemos trabalhar. Assim, as referências mais importantes da composição de texto em design editorial, (e gráfico) serão a baseline e a altura de x. Estas serão a base de alinhamentos inferior e superior, respectivamente, e darão também a base de construção de uma “baseline grid”, essencial para a execução de layout em design editorial. A questão da baseline grid e da grelha é muito complexa e é incontornavelmente a base de todo o trabalho, mas este assunto será visitado mais tarde.
Voltemos às tais ‘batotas’. Um exercício interessante que infelizmente já não fui a tempo de fazer na minha cadeira de tipografia na universidade, seria o de alinhar as três formas base, como se de caracteres tipográficos se tratasse. Desenha-se um quadrado, e é a medida do lado que estabelece a altura entre a baseline e a altura de x. Desenham-se estas duas linhas para delimitar a altura da nossa “linha de texto”. Utilizando esta medida para o diâmetro do círculo e para os lados do triângulo, rapidamente nos apercebemos que o círculo e o triângulo aparentam ser mais pequenos que o quadrado e não conseguimos alinhá-los. Chegamos a uma conclusão interessante: é necessário compensar essas faltas geradas pelas obliquidades dos elementos triangulares e as curvas do elementos circulares, pelo que é necessário aumentar o diâmetro do círculo e os lados do triângulo, para acompanharem a linha visual. Com este exercício comprendemos o porquê das formas circulares das letras ultrapassarem as linhas de altura de x e da baseline, porque o peso dos arcos apenas se começa a “notar” para lá dos pontos de tangência, da mesma forma que apenas quando o ângulo dos ritmos oblíquos começam a “abrir”, ganham volume na mancha das palavras. Como consequência, os vértice inferior dos “v”s, e as formas curvas inferiores dos “s”, “a”, “o”s ultrapassam a linha de base para baixo , e as formas curvas destes últimos saltam por cima da altura de x, o suficiente para preencher essas lacunas visuais. Nos alinhamentos, as referências superiores serão, por isso, das letras que terminam rectas na altura do x minúsculo, como é o caso do próprio, ou travessão do “t”, e as inferiores serão os terminais das hastes verticais das letras rectas sem descendentes, como é o caso do “n”, “m”. Isto é mais notório nos typefaces sans serif. Nos serifados, as próprias serifas compõem a linha de base, o que origina o argumento de melhor legibilidade no acompanhamento das linhas textuais.
Paul Renner, nos anos 20 do séc XX, ter-se-á deparado com estes problemas. O seu popular typeface Futura, materializador do pensamento racionalista, minimalista geométrico da Weimar, “aparenta” ser extremamente rígido em construção, mas as suas subtis intervenções na quebra da geometrização tornam a sua percepção equilibrada. A título pessoal, os pesos mais negros deste typeface destróem a sua essência porque quanto maior a espessura, mais notória é a batota que se faz no seu desenho, perdendo-se por consequência a espinal medula geométrica. Isto serve de exemplo para determinar que os sans serif são particularmente sensíveis a estes acertos. Os typefaces serif são modulados, de espessuras variáveis, o que disfarça mais estas alterações. Como a tendência dos sans serif é para a manutenção de espessura e imposição geométrica, quando existem estas “talhadas”, estas tornam-se flagrantes. Isto é sempre um pau de dois bicos: ou quebra a essência do desenho, ou pelo contrário, enfatiza o constraste e assume-se como expressão. Um typeface designer que usa estes contrastes como arma é Christian Schwartz.
Estas últimas observações revelam a importância do desenho de letra nos ritmos de leitura. Um typeface design é bastante enganador. Typefaces como a Scala, Bell Centenial e mesmo a “conhecida” Times New Roman poderão ser considerados “feios”, mas são os seus atributos grotescos que lhe conferem características de funcionalidade únicas, à escala de leitura extensiva. A Scala, obra-prima de Martin Majoor, funciona com truques ópticos que nos fazem perceber as letras como “fechadas”, quando existem interrupções no seu desenho e os acabamentos rudes ajudam a definir opticamente as zonas apertadas das letras, que têm tendência a “fechar” na impressão, a Bell Centenial possui aquilo que se assemelha a círculos de cortante, que impedem os cortes das letras de “rasgar”, borrando no interior. Esta característica foi criada para paginar extensas listas telefónicas em papel poroso, que bebe a tinta; impresso, parecerá “normal”. É face as estas complexidades que percebemos que existe toda uma estrutura no desenho dos typefaces, e que sendo “bonitos”, poderão não cumprir a sua missão na mancha macroscópica, tornando-a menos agradável o que consequentemente reduz a sua apetência para a leitura. Posto isto, posso concluir que, ainda que os tijolos sejam grosseiros, no final a casa poderá ser aquela que gostaríamos de habitar.

1 comentário:

  1. Sandro,

    Este artigo é simplesmente fantástico!!!! Tão fantástico que quero reproduzí-lo, na íntegra, no ChapaBranca.com

    Peço sua permissão para publicá-lo em nosso Blog. Não preciso dizer que os seus créditos de autoria serão preservados. Colocaremos também um link, no artigo, direcionando nossos leitores para o post original (aqui em seu blog).

    Aguardo o seu retorno.

    Um grande abraço.

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