17.11.08

a cama de procrustes


O espacejamento representa 90% do trabalho em tipografia, e é aqui que se revelam as patologias e o refinamento da composição. A questão do espaço poderá ser vista de vários pontos de vista e movimentar-se em vectores num espaço cartesiano nas mais variadas direcções, para além das “naturais” vertical e horizontal. Mas da mesma forma que Picasso teve de dominar a arte do desenho realista antes de partir para uma nova perspectiva da realidade e da composição que teve a sua génese nas Demoiseles d’Avignon, é necessário compreender e dominar as questões basilares da prática tipográfica.
Falamos de linhas e colunas, sendo que a coluna será a soma das linhas segundo o eixo vertical que, no nosso mundo ocidental de escrita alfabética latina, crescem no sentido esquerda/direita, cima/baixo. Penso que seja inevitável pensar em colunas sem nos lembrarmos dos gregos e dos romanos, e nas fachadas dos seus templos. Há quem considere a tipografia como uma forma de arquitectura, em que as palavras representam tijolos, mas isto é uma metáfora, sendo que pode apenas ser aplicada à construção do conhecimento e maturação do pensamento. Os gregos já tinham a noção de que a percepção é enganadora, e utilizavam truques visuais nas suas colunas para que as percebêssemos como verticais: a sua espessura tende a aumentar verticalmente porque como é sabido, a visão estereoscópica segue as regras da perspectica cónica e consequentemente, dos pontos de fuga que resultam do encontro de duas rectas paralelas no infinito. Como resultado, serão abauladas e não de contornos paralelos. Ainda que seja de uma forma muito subjectiva, poderá fazer-se a transposição desta analogia para as colunas textuais, considerando que as colunas de texto são construídas segundo uma forma visual orgânica. Este conceito de leitura orgânica, usando as palavras da professora Joana Lessa, diz-nos que a linguagem verbal não segue (ou não deve seguir) parâmetros matemáticos de composição que enclausurem a percepção partindo a unidade da linguagem verbal, materilizada na palavra. Desta forma, a sequencialidade de leitura horizontal exige que o espacejamento a manter entre os caracteres e as palavras é mais importante que a construção de um bloco linear formado pelas mesmas palavras, em busca da linha ‘perfeita’. Estas linhas perfeitas deverão construir uma coluna sólida, inscrita nos contornos de um rectângulo fictício perceptivo, segundo uma proporção de relação entre o formato da página e a mancha textual. Esta tradição formal teve a sua origem ainda nos escritos reprodutivos dos monges copistas, que utilizando algumas artimanhas subjacentes à escrita caligráfica, de sua natureza irregular e errónea, demonstrou ser um problema para Gutenberg, na composição da sua Bíblia de 42 linhas. Analisando as suas matrizes, deparamo-nos com um facto curioso: como a sua composição tinha como objectivo mimetizar os escritos caligráficos, mas utilizava um processo de standardização formal, as suas colunas nunca poderiam ser perfeitas como caracteres regulares. Consequentemente, existiam várias representações (ou matrizes) para a mesma letra, mas com larguras diferentes. Para além disso, foram utilizadas abreviaturas, que ajudavam a regular a manipulação do espaço da composição. Culpo Gutenberg por ser o primeiro a utilizar estratégias de desfiguração da linguagem, com o pretexto de ‘justificar’ as suas colunas ‘perfeitas’. No entanto, não vejo justificação para justificar. Esta estratégia faz da linguagem verbal um produto menos humano, que provoca fracturas nos ossos da escrita, que necessitam de talas para se movimentar. E da mesma forma como não conseguimos caminhar naturalmente com talas nas pernas, um texto justificado altera os ritmos de leitura e, como consequência a velocidade e regularidade na padronização da leitura. Imaginando o texto como uma melodia, os seus compassos são alterados sem justificação, provocando notas fora do seu tempo, ou um ‘scratch’ quando a agulha desliza fora dos seus canais de um disco de vinil. Ainda assim, para minorar estragos, existem algumas receitas para tratar algumas destas patologias. Se a justificação for uma imposição, poderemos reduzir os espaços soltos a trabalhar utilizando instrumentos como a hifenização (que por regra não deverá exceder os 3 hífens consecutivos), e a ‘hanging punctuation’, que à letra significa "pontuação suspensa". A pontuação e hifenização poderão ser deixada de fora do corpo textual, uma vez que na sua percepção macroscópica não possui uma presença gráfica relevante. Isto conjugado com uma boa largura de coluna integra melhor as peças do puzzle. Em design editorial, devemos ter sempre em conta a estrutura hierárquica e o tipo de conteúdos textuais em função da sua velocidade de leitura. Um jornal é diferente de um romance e isso reflecte-se na largura de coluna. O facto de ter colunas mais curtas aceleram a velocidade de leitura e isso adequa-se ao tipo de texto jornalístico. Em média, as colunas de jornal terão de 4 a 6 palavras e isto representa um perigo para a composição textual neste campo. Uma grande desilusão é ver uma cara bonita que quando abre um sorriso, se vêm dentes que faltam. Pois bem, esta patologia é frequente em texto mal justificado. Ao longo da verticalidade da coluna, formam-se ‘rios’ que abrem espaços brancos no relevo geográfico do texto, que quebram a uniformidade da mancha que se pretende, ao ponto de existirem situações ridículas de existirem 3 palavras nos espaço onde deveriam estar 6. E mesmo usando aparelhos de ortodontia, o sorriso fica sempre comprometido. Outro ‘crime tipográfico’ (usando a terminologia de Lupton) e que deu o título ao livro de Spikermann (“Stop Stealing Sheep, and find out how type works”), é o alargamento do espaço entre caracteres. As palavras são rebanhos, pequenos grupos de letras que fazem sentido enquanto unidade e são lidas como tal. Nunca se devem ‘roubar ovelhas’ dos rebanhos, precisamente porque as palavras não são lidas letra a letra. Nestes casos, e porque a frase é assim e não de outra forma, teremos de recorrer a novas escolhas. Poderemos recalcular a largura geral das colunas para ganhar espaço de manobra, isto porque quanto maiora largura da coluna, menos espaço teremos ‘de sobra’, e os espaços afectados tornam-se menos perceptíveis no seu conjunto, tornando-os mais discretos (isto é perceptível no design editorial de romances, em que as colunas justificadas parecem mais equilibradas porque a largura dá essa margem de manobra). Outra manobra será a selecção de um typeface condensado, mais propício para colunas estreitas (atenção a outro crime tipográfico que infelizmente se vê muitas vezes aplicado pelas empresas de impressão e recorte de vinis para fachadas de estabelecimentos comerciais: comprimir forçadamente na horizontal ou vertical as formas das letras no pretexto de preencher o espaço disponível. Isso destrói o desenho da letra que foi pensado proporcionalmente. Existem versões condensadas ou expandidas dos typefaces, como é o caso da Helvetica ou da Univers, mais adequados a suportes de pronunciação vertical e horizontal, respectivamente). No entanto, o mais natural a fazer, é alinhar o texto à esquerda. O texto ‘ragged right’, ou ‘em bandeira’ de alinhamento à esquerda materializa a forma mais fiel de visualização da linguagem verbal, no sentido em que evita a heterogeneidade do espacejamento, mantendo o ritmo de apreensão de leitura. A percepção da coluna persiste e para além disso, a assimetria da linha limítrofe direita ajuda o olho a localizar as mudanças de linhas mais facilmente e mesmo a localização geral da leitura detectando os parágrafos, se por alguma razão desviarmos o olhar por momentos. Como complemento, poderá utilizar-se hifenização, para que as quebras de linhas não sejam tão pronunciadas. Defende-se que uma leitura agradável se situa entre as 6 e 8 palavras por linha, mas é, mais uma vez, necessário ter em conta a natureza do conteúdo.
Por fim, é necessário avaliar a largura das linhas quando nos deparamos com espaço horizontal ‘aberto’. As linhas demasiado longas são cansativas, mesmo alinhadas à esquerda. Para mais, quando a linha é demasiadamente longa, enfatiza os parágrafos, correndo o risco de transformar as frases em tópicos separados. Na realidade, trata-se de uma percepção de equilíbrio que se vai calibrando com a experiência. White disse-o bem quando afirmou que nós, designers, temos de ‘ver’ o texto para além de o ler. Somos todos diferentes, mas todos temos insónias quando a cama não se adequa ao nosso tamanho e às nossas necessidades de conforto.

nota: o título do artigo, por feliz coincidência ou invocação de memória subconsciente, corresponde a um dos capítulos de "An Essay on Typography" de Eric Gill, que estou a reler, agora na versão original britância, e não a versão da Almedina. Por isto, as minhas desculpas ao mestre. No entanto, é sempre bom ver que em alguns pontos do pensamento, as linhas se encontram com as de quem tem o seu reconhecido valor.

13.11.08

cronographia



Traduzido à letra, cronografia significa a “escrita do tempo”, mas o que despertou interesse foi o jogo de palavras que acontece quando se inverte este pensamento. “Tempo da escrita” remeteu-me imediatamente para a questão da (in)temporalidade em tipografia. Hoje em dia, a maior parte dos livros seguem as regras de paginação que no Renascimento já se utilizavam, desde o formato, à proporção da mancha de texto relacionados pelo célebre rectângulo de ouro, e consequentemente, à série de Fibonacci. É bom, no entanto, salientar que ainda que muitas dessas regras se apliquem no design editorial, os requisitos, elementos, categorias e hierarquias de informação nos tempos que correm, necessitam de outras formas de concepção de layouts que estas regras não adequam no seu todo, ou em parte. Mas antes de pensar no layout propriamente dito, existe algo a considerar: os typefaces, ou desenhos de letra. Recordo-me que se costuma afirmar que a Garamond é considerada “intemporal”, porém tenho uma observação a fazer quanto a isto. Na realidade, não é desenho de letra que é intemporal, mas as suas características de funcionalidade. Uma Garamond adequa-se perfeitamente à leitura extensiva, porque possui características indubitáveis de legibilidade e “lecturabilidade”, mas pessoalmente, nunca poderei deixar de a relacionar com o contexto histórico e estético em que foi desenhada. A tipografia, seja no typeface design ou no design editorial, e à semelhança de outros produtos e formas de comunicação humana, são o espelho das crenças, cultura e pensamento da época em que foram concebidos. A Legacy, desenhada num processo de gestação de alguns anos por Ronald Arnholm, baseada no tipos de Nicholas Jenson na juventude da era Renascentista, reflecte a alma do desenho Veneziano de então. Existirão typefaces “mais fáceis” de contextualizar, relacionando-os com ensaios de movimentos artísticos, que o denotam de forma flagrante, como será o caso dos estudos de Jan Tschichold, Herbert Bayer, Ballmer, Van Der Leck, Van Doesburg, Max Bill, Paul Renner, Rodchenko e Popova, entre outros, integrados nos movimentos artísticos e ideológicos da Bauhaus, De Stijl, Construtivismo, etc. (as foundries P22 e The Foundry editaram os famosos ‘architypes’, desenhando as fontes digitais dos typefaces idealizados por estes amantes da geometria, com base nos desenhos originais). Outros terão ganho notoriedade pela sua acção social e histórica, transformando-se numa referência cultural, e mesmo nacional. Quem não conhece o famoso London Underground, cujo typeface usado na sinalética e logótipo, desenhado pelo mestre de Eric Gill, Edward Johnston, em 1916, que ainda hoje se mantém ‘intacto’? A própria descendente do typeface de Johnston desenhada por Gill – Gill Sans – a sans serif humanista que se transformou no estereótipo das sans britânicas, usada por Cayatte na sinalética da Expo 98 e considerada como sendo das mais legíveis do mundo? Chegamos aqui a uma conclusão: os desenhos de letra são um registo histórico e simultaneamente documental dos ideais estéticos da sua era contemporânea. A tipografia é então a testemunha perfeita da História, porque encarna a própria História.
Como referi há pouco, o que temos de ter em atenção em relação ao typeface design serão as propriedades que lhe conferem legibilidade e lecturabilidade e essa é (ou deverá ser) a premissa comum entre todos eles. Isto é revelador de, como em qualquer objecto de design, existir um objectivo de funcionalidade incontornável. A partir daqui, o que irá influenciar o genótipo de um typeface apenas serão factores associados ao contexto social, sócio-económico e cultural. Valores como a moda, definindo esta como a reinvenção do conceito de belo, causarão mutações no código genético das letras, alterando o seu fenótipo, ou aspecto final, mas as bases de desenho mantêm-se. No entanto, existe também um outro factor a enunciar: o suporte. Isto tem consequências na resolução técnica do typeface design. Durante muito tempo estivémos habituados à existência das letras em suportes de papel, mas mesmo os papéis de hoje possuem propriedades diversas que influenciam a técnica de impressão. Esta relação é recíproca porque na tomada de decisão, existem typefaces mais adequados a determinados tipos de papel, da mesma forma que existem papéis que restringem a escolha de um typeface. Todavia, nem só de papel se fala que quando percorremos este longo caminho tipográfico. As letras emanciparam-se e hoje existem noutros suportes, muito para além do papel. É verdade que já foram esculpidas em cerâmica, pedra, ossos de animais, metais, etc., mas hoje percorrem distâncias milenares em artérias, veias e capilares longos que se ramificam infindavelmente, transportados por hemácias binárias. A tinta deu lugar a valores de RGB, que codificam a luz projectada num écran, que recriam ambos a tinta e o papel. A tipografia tornou-se independente do papel, ou do suporte físico. Quando questionado sobre a dependência do papel, Erik Spikermann limitou-se a responder-me que “para já, os écrans dos computadores são um papel de fraca qualidade”. Estas observações acordam-me para a realidade de que a tipografia assume muitas vertentes, e que existe em mundos muito diferentes, e que esta existência só acrescenta mais uma variável no typeface design: o medium. É por isso que é uma actividade tão difícil: porque não é objectual. A tipografia possui uma enormidade de valores, que no final, resultam em letras, letras essas que fazem parte do código que constrói a linguagem, linguagem essa que carrega um fardo pesado: o peso do conhecimento, da cultura, da arte, e de todos os atributos e produtos da Humanidade, que se propagam pelo tempo e nele sobrevivem e sobre ele testemunham.

10.11.08

escrever direito por linhas tortas


Como já aqui expus antes, a tipografia é uma disciplina exercida de uma forma sistemática, metódica e rigorosa, e é necessária muita experiência e convivência com os problemas que se colocam na composição, para minimamente dominar esta que é considerada por alguns como uma arte (mas isso é outro assunto). Embora seja regida por semi-leis das ciências exactas, na prática vergam-se a um atributo humano: a percepção. São muitas as artimanhas que se utilizam para enganar o olho humano e, consequentemente, a apreensão do elementos gráficos que constituem a escrita. Sim, porque as letras não deixam de ser signos, símbolos que tiveram origens (não só) iconográficas, mas que se foram aperfeiçoando, atingindo um patamar de abstracção tal que hoje são formas independentes, relacionadas com fonemas, constituindo peças deste puzzle tão complexo que é a linguagem verbal.
É sabido que (para leitores com alguma experiência) a leitura não é conduzida letra a letra, mas através da mancha visual que esta produz, razão pela qual muitas vezes as “pequenas dislexias” nos poderão passar despercebidas e saltamos os erros, sem interromper a leitura. Talvez seja por isso que os erros ortográficos são detectados, uma vez que a métrica de uma palavra como ‘mexer’ é alterada, quando escrita ‘mecher’. Detectamos algo de estranho na “mancha da palavra” numa primeira observação, depois será a ortografia e a memória da aprendizagem que entra em funcionamento. Mergulhando um pouco na forma que constitui essas manchas, ao pequeno detalhe do desenho de letra, reparamos que as coisas não são assim tão matemáticas como julgávamos. Para além dos ritmos horizontais das letras serem diferentes, as alturas são também desiguais. Não falo apenas dos ascendentes e descendentes das letras minúsculas, mas da influência de outros ritmos que perturbam esta percepção, e que nos obrigam a utilizar alguns truques visuais. Falo dos ritmos oblíquos e curvos. Isto remonta aos estudos das formas geométricas puras, da Bauhaus: o triângulo, círculo e quadrado. Partindo destes como referência, poderemos encaixar as formas dominantes das letras nestas categorias tendenciais. Um “v”, um “A” entrarão na categoria dos oblíquos triangulares, os “n” e “x” nos quadrados, os “o”, “c” nos circulares. Existe depois uma complexificação que resultará na adição de características, que tornam as letras “híbridas”, como é o caso de “N”, “a”, “g”, “m”, etc. Não é necessário recorrer aos estudos de Dürer ou dos seus contemporâneos renascentistas para perceber que as letras maiúsculas possuem alguns critérios diferentes de análise, na medida em que estas aparentam ser mais autosuficientes, que poderão ser inscritas nas formas geométricas base de uma forma mais directa, como é o caso do quadrado, que unclausura a forma do ‘“M”, que deu origem ao termo “Em”, ou quadratim. Ainda que exista a necessidade de resolver alguns conflitos de forma como o par “VA”, que necessitam de algum kerning, é mais fácil trabalhar as maiúsculas que as minúsculas. Quando nos referimos a estas, é necessário introduzir os conceitos de “altura de x”, “linha mediana” e “baseline”, ou linha de base. Isto porque no caso de um texto extensivo e segundo os parâmetros “normais” de escrita, em que provavelmente 90% dos caracteres serão minúsculos, o ratio de existência de ritmos ascendentes e descentes será inferior à presença de mancha da linha de base (baseline) à altura de x delineada pela “linha mediana”. Quer com isto dizer que a questão da linha imaginária central se situa sensivelmente a meia altura de x. Desfocando propositadamente a visão, a percepção das manchas horizontais situam-se nesta zona e será com esta referência visual que devemos trabalhar. Assim, as referências mais importantes da composição de texto em design editorial, (e gráfico) serão a baseline e a altura de x. Estas serão a base de alinhamentos inferior e superior, respectivamente, e darão também a base de construção de uma “baseline grid”, essencial para a execução de layout em design editorial. A questão da baseline grid e da grelha é muito complexa e é incontornavelmente a base de todo o trabalho, mas este assunto será visitado mais tarde.
Voltemos às tais ‘batotas’. Um exercício interessante que infelizmente já não fui a tempo de fazer na minha cadeira de tipografia na universidade, seria o de alinhar as três formas base, como se de caracteres tipográficos se tratasse. Desenha-se um quadrado, e é a medida do lado que estabelece a altura entre a baseline e a altura de x. Desenham-se estas duas linhas para delimitar a altura da nossa “linha de texto”. Utilizando esta medida para o diâmetro do círculo e para os lados do triângulo, rapidamente nos apercebemos que o círculo e o triângulo aparentam ser mais pequenos que o quadrado e não conseguimos alinhá-los. Chegamos a uma conclusão interessante: é necessário compensar essas faltas geradas pelas obliquidades dos elementos triangulares e as curvas do elementos circulares, pelo que é necessário aumentar o diâmetro do círculo e os lados do triângulo, para acompanharem a linha visual. Com este exercício comprendemos o porquê das formas circulares das letras ultrapassarem as linhas de altura de x e da baseline, porque o peso dos arcos apenas se começa a “notar” para lá dos pontos de tangência, da mesma forma que apenas quando o ângulo dos ritmos oblíquos começam a “abrir”, ganham volume na mancha das palavras. Como consequência, os vértice inferior dos “v”s, e as formas curvas inferiores dos “s”, “a”, “o”s ultrapassam a linha de base para baixo , e as formas curvas destes últimos saltam por cima da altura de x, o suficiente para preencher essas lacunas visuais. Nos alinhamentos, as referências superiores serão, por isso, das letras que terminam rectas na altura do x minúsculo, como é o caso do próprio, ou travessão do “t”, e as inferiores serão os terminais das hastes verticais das letras rectas sem descendentes, como é o caso do “n”, “m”. Isto é mais notório nos typefaces sans serif. Nos serifados, as próprias serifas compõem a linha de base, o que origina o argumento de melhor legibilidade no acompanhamento das linhas textuais.
Paul Renner, nos anos 20 do séc XX, ter-se-á deparado com estes problemas. O seu popular typeface Futura, materializador do pensamento racionalista, minimalista geométrico da Weimar, “aparenta” ser extremamente rígido em construção, mas as suas subtis intervenções na quebra da geometrização tornam a sua percepção equilibrada. A título pessoal, os pesos mais negros deste typeface destróem a sua essência porque quanto maior a espessura, mais notória é a batota que se faz no seu desenho, perdendo-se por consequência a espinal medula geométrica. Isto serve de exemplo para determinar que os sans serif são particularmente sensíveis a estes acertos. Os typefaces serif são modulados, de espessuras variáveis, o que disfarça mais estas alterações. Como a tendência dos sans serif é para a manutenção de espessura e imposição geométrica, quando existem estas “talhadas”, estas tornam-se flagrantes. Isto é sempre um pau de dois bicos: ou quebra a essência do desenho, ou pelo contrário, enfatiza o constraste e assume-se como expressão. Um typeface designer que usa estes contrastes como arma é Christian Schwartz.
Estas últimas observações revelam a importância do desenho de letra nos ritmos de leitura. Um typeface design é bastante enganador. Typefaces como a Scala, Bell Centenial e mesmo a “conhecida” Times New Roman poderão ser considerados “feios”, mas são os seus atributos grotescos que lhe conferem características de funcionalidade únicas, à escala de leitura extensiva. A Scala, obra-prima de Martin Majoor, funciona com truques ópticos que nos fazem perceber as letras como “fechadas”, quando existem interrupções no seu desenho e os acabamentos rudes ajudam a definir opticamente as zonas apertadas das letras, que têm tendência a “fechar” na impressão, a Bell Centenial possui aquilo que se assemelha a círculos de cortante, que impedem os cortes das letras de “rasgar”, borrando no interior. Esta característica foi criada para paginar extensas listas telefónicas em papel poroso, que bebe a tinta; impresso, parecerá “normal”. É face as estas complexidades que percebemos que existe toda uma estrutura no desenho dos typefaces, e que sendo “bonitos”, poderão não cumprir a sua missão na mancha macroscópica, tornando-a menos agradável o que consequentemente reduz a sua apetência para a leitura. Posto isto, posso concluir que, ainda que os tijolos sejam grosseiros, no final a casa poderá ser aquela que gostaríamos de habitar.

6.11.08

avec ou sans?


Ao contrário do que se pensa sobre as letras, o tipo "sans serif", ou sem serifa, é anterior ao clássico e antigo serifado. Inscrições em cerâmica e pedra mostraram-nos que os gregos escreviam de uma forma que hoje poderemos chamar aproximada de um sans serif uppercase, de linhas simples. Mais tarde vieram os romanos, que pediram emprestadas letras aos gregos,mas que continuaram a escrever com as mesmas características formais. É actualmente aceite quase dogmaticamente que a serifada poderá ter tido a sua origem nas letras esculpidas pelos romanos nas suas pedras e monumentos, a famosa Monumentalis Quadrata. As letras eram desenhadas a pincel para depois serem escavadas na pedra e a serifa resultaria de um corte terminal nas extremidades das letras. Um typeface que tão bem ilustra a beleza desta escrita é a Trajan, desenhada por Carol Twombly, que infelizmente tem sido usada sem contexto que a respeite. Quando as letras passaram das pedras para o pergaminho, papiro e outros suportes de escrita, muito aconteceu. A história é longa e poderemos, com estudo e exploração, atribuir diversas culpas para a origem da letra serifada como a conhecemos hoje. A Monumentalis Rustica, que mimetizava as serifas da Quadrata com o pincel, a pena, as diversas escritas góticas "blackletter" que eram são características pelas suas terminações grossas e pontiagudas, a escrita Carolíngia cujos términos de erro de ponta poderão sugerir as tais serifas, e que darão origem ao alfabeto de minúsculas como hoje as conhecemos. Sim, porque não nos devemos esquecer que os caracteres que compõem o nosso alfabeto são uma aglomeração de várias escritas que foram usadas como independentes durante muito tempo: a monumentalis quadrata terá dado origem às nossas maiúsculas, o albeto manuscrito dos documentos de Carlos Magno terá dado origem às nossas minúsculas, e a numeração árabe, os nossos dígitos.
Quando Nicolas Jenson concebeu os primeiros tipos venezianos como são hoje conhecidos, à semelhança de Gutenberg, mimetizou a escrita decorrente do contexto onde se inseria, mas ainda que sugira caligráfico, o trabalho no metal deu-lhes uns toques de perfeccionismo que faltava. Durante anos e anos, a letra serifada sofreu mutações e ramificou-se em muitas estirpes, mas continuava dominadora no campo literário. Apenas no final do século XIX viria a ser desafiada por uma letra que começava a libertar-se desses "órgãos vestigiais". Na Europa, as avantgardes artísticas, experimentalismos racionais e industrialização, originavam letras com espessuras regulares, de imposição geométrica, "sans serif", libertando-se dos clássicos serifados. Na América, onde o advertising crescia, precisava de letras de grande escala e peso visual, para atrair compradores, desenvolvendo as suas "gothic", denominadas assim por comparação com o peso visual da "textura" gótica europeia.
Hoje em dia, o typeface design gira em torno de uma classificação que tem por base os mais variados critérios, desde os movimentos artísticos contemporâneos da data de criação dos typefaces ou outro contexto histórico, aos seus atributos categóricos na hierarquia de informação, etc., e as famílias tipográficas já possuem uma genealogia que se expande desde o serif, à sans serif, atravessando outros patamares híbridos que dificultam a sua classificação. Um bom exemplo disso é a família Rotis, de Otl Aicher. Mas o que continua a ser alvo de discussão são as questões da legibilidade e "lecturabilidade", premissas das quais o typeface nunca poderá fugir. O que acontece é que as suas propriedades são agora associadas às hieraquias de informação no design editorial, o que para mim faz todo o sentido. A hierarquia traz necessidades específicas de desenho de letra, que obviamente influenciarão todo o layout. Porém, a grande questão que se coloca ainda é a comparação de legibilidade: qual é mais legível? A sans serif ou a serif? Depende. Estamos a falar de um outdoor 8x3 metros, ou de um cartão pessoal? Estamos a falar de um dicionário ou de um cartaz? Um jornal, revista ou brochura? As características de leitura são diferentes. Era impensável para mim usar uma Didot na sinalética de estrada, da mesma forma que não paginaria um livro de Saramago em Franklin Gothic. É necessário pesar os adversários e colocá-los num ringue adequado. Quando falando em texto extensivo, digamos, uma revista com um volume considerável de âmbito literário e menos ilustrada graficamente, usaria a que é considerada mais legível, uma serif. E pensei um pouco sobre este argumento. Não se trata apenas de respeitar a sua tradição literária, porque existem typefaces serifados com características "modernas". Acho que a questão do contraste e terminação serão úteis. Um desenho sans serif tende a ser de espessura constante e de desenho geométrico mais rígido, ou grotesco, tornando a sua mancha mais uniforme. Mesmo alterando a sua altura de x, a relação de ascendentes/descendentes tende a ser mais curta. Isto poderá ter consequências de leitura "monofónica", e a mancha torna-se demasiado homogénea. Creio que é necessário um contraste adequado para o descernimento perceptivo do leitor. A existência de serifas força a modulação, aumentando naturalmente o contraste. Para mais, reforça os terminais das letras, enfatizando os seus limites. Outra característica positiva é que a entrelinha delinea-se de uma forma natural, ajudando visualmente a percorrer os ritmos horizontais. Para textos extensivos, onde as coluna poderá ter um número de palavras superior a 8, 10 palavras por linha, torna-se um auxílio a não descartar. Poderá argumentar-se que a legibilidade dos typefaces sans serif poderá ser melhorada com o aumento da entrelinha, e que a altura de x maior também proporciona melhor legibilidade, mas na realidade é um atributo inerente ao sans serif que nasceu por consequência e não por origem do desenho.
Idealmente? Colocar estas características no lugar certo, combinando os atributos. Deixar o serif para o corpo de texto principal, e utilizar o sans serif para títulos, folios (números de pagina) e notas, mas é necessário negociar o espacejamento, e pesos visuais. Há muito por onde escolher e os mais variados critérios de escolha, mas o importante é que tudo seja lido sem dificuldade e com a melhor veiculação de conteúdo possível. Alors a vous: avec ou sans?