16.11.09

design editorial (p1)


São inúmeras as formas de trabalhar com a tipografia, mas a mais íntima e aquela que mais põe em prática os fundamentos da tipografia, é o design editorial. Esta vertente do design é a que exige mais método, estrutura, coerência e mesmo estratégia comunicacional. Trata-se de uma área que é o centro de convergência de produtos oriundos das mais variadas disciplinas profissionais e artísticas, e que deve materilizar, de forma coerente, organizada e apelativa, uma publicação que veicula conteúdos escritos das mais variadas naturezas. Neste tipo de trabalho, a mensagem verbal escrita é o elemento mais importante, e todos os outros elementos devem ser utilizados como seu reforço e/ou complemento. Assim, se a mensagem verbal escrita é o elemento mais importante e a tipografia é a expressão gráfica dessa mesma linguagem, então a tipografia torna-se a disciplina estruturante de uma publicação, e o domínio das suas propriedades e potencialidades torna-se essencial. Não digo com isto, no entanto, que não existam publicações que possam oscilar a nível de conteúdos, tendendo para uma maioria de conteúdos escritos, no caso de uma revista literária, ou fotografia, numa revista da especialidade, mas estes serão extremos opostos. É natural que nesta linha de pensamento, em que se valoriza o texto, que um designer pense imediatamente em typefaces e typeface design, mas porque não é o typeface design a forma mais íntima de trabalhar com tipografia? É importante frisar que entendo a tipografia como a forma de trabalhar o espaço visual da linguagem verbal, incluindo não só as formas das letras, mas as contra-formas, e o espaço em branco ou não-verbal. O typeface design é uma vertente mais específica da tipografia, que desenha expressões de texto através das formas das letras e do seu fenótipo de conjunto, mas a tipografia desenha expressões de discurso. Trata-se de desenhar um corpo e com esse corpo desenhar movimentos, que terá o seu equivalente auditivo: se considerarmos a família tipográfica e os seus glifos [letras e símbolos que constituem um alfabeto, incluindo a pontuação e todas as versões gráficas de uma mesma letra] como um conjunto de notas musicais, a partitura (texto) que lhes dá sentido poderá ser interpretada com diferentes tempos, por vários instrumentos, cada músico tocando com a sua forma de tocar e interpretar o tema, atribuindo-lhes sonoridades e características completamente diferentes.
A tipografia, enquanto gestão do texto, do espaço e do suporte, deverá tirar partido dos atributos das famílias tipográficas, e utilizá-las com adequação e critérios de leitura. Será pertinente invocar a premissa de lecturabilidade versus legibilidade. Poderemos utilizar o supostamente melhor typeface em termos de legibilidade e estética para um trabalho, mas um tratamento tipográfico desadequado poderá destronar as propriedades positivas que pretendemos aproveitar de um bom typeface, prejudicando a sua lecturabilidade, ou seja, o seu comportamento enquanto texto em termos de atractividade inerente para ser lido de forma agradável, motivado por más opções de formatação, composição e layout. Será o equivalente a termos uma pessoa que julgamos ser bonita, atraente, mas que em diálogo se revela ter dificuldades em pronunciar ou articular as palavras, mesmo que seja interessante o que tem para dizer, repelindo quem o tenta ouvir e entender. Por outro lado, ter uma publicação bem concebida, mas possuindo conteúdos mal escritos e desarticulados, pode ser comparado uma pessoa que fala muito bem, tem uma voz agradável e uma apresentação muito atraente, mas um discurso completamente desinteressante, incoerente e sem assunto, que mais uma vez repele a tenta ouvir ou com ele dialogar. Concluimos então que assumindo uma publicação como uma transmissão do discurso de quem escreve, se for apenas bonita e não tiver um bom conteúdo informativo ou cultural, não cumpre o seu objectivo, uma vez que, apesar de apelativa, fará o leitor sentir-se enganado por não retirar nenhum conhecimento ou usufruto intelectual. É importante por isso dizer que se não existir um conteúdo bem estruturado e interessante, não é o design que irá salvar a publicação, tal como acontece com outras áreas, em que muitas vezes se utiliza o design como cosmética para as falhas que não se podem encontrar.

Mas afinal, o que é design editorial? Na minha perspectiva, trata-se de uma forma de design que trabalha para a informação e para a literacia, e como tal, tem como objectivo a melhor canalização possível de conteúdos jornalísticos, culturais e literários, melhorando a eficácia comunicacional.
No seu livro Design Editorial, Yolanda Zappaterra expressa a ideia de que o design editorial é, na prática, uma forma de “jornalismo visual”. Depreendi, na sua perspectiva, que Zappaterra não inclui o book design no design editorial, pelo menos de uma forma visível, falando apenas de revista, jornal ou outros periódicos. A diferença reside, portanto, na questão de periodicidade, renovação regular de conteúdos segundo uma matriz editorial, reinventando-se a cada número, embora circunscrita à sua identidade e contexto de actuação. A distinção poderá ser mais técnica, na medida em que, regra geral, o book design apenas utiliza texto para compôr as entranhas do miolo, sendo a sua componente mais visual e atractiva a capa, que contém todos os ingredientes de um cartaz publicitário da obra que envolve.
Se imaginarmos, sem os condicionalismos da obsolescência, factualidade ou estrutura hierárquica jornalística, que cada “obra” tem uma “capa” para atrair o leitor, então um jornal será um “livro de livros”, em que cada livro será um artigo, que compete “na estante” por atenção.

A história da escrita e dos seus suportes levam a crer que o livro terá sido o antecessor de qualquer suporte escrito impresso segundo os meios desenvolvidos por Gutenberg, e que as publicações terão sido ramificadas a partir daí, sob o condicionalismo do objectivo e da natureza da publicação. O livro, enquanto suporte comunicacional, que pode incluir imagem, seja ela ilustração ou fotografia para além de texto, diferencia-se pelo cariz de exclusividade da obra, ainda que esta possa ter sequela ou pertencer a uma série, mas que à partida não seja datada por imposição ou obsolescência dos conteúdos, regras pelas quais se regem as publicações jornalísticas, culturais ou desportivas.
Vale a pena recordar que os objectivos de Aldo Manuzio deram o real sentido ao termo publicação quando, com a colaboração de Francesco Griffo, criou um novo formato de livro : o livro de bolso. Este livro, mais pequeno e de produção mais barata e rápida, utilizando os caracteres do alfabeto itálico (mais condensados que o romano) concebido por Griffo, destinava-se à expansão do conhecimento, mais acessível ao público em geral, e não apenas os privilegiados do clero e nobreza. Assim sendo, encaro o design editorial como um veículo de transmissão de conhecimento e cujo conteúdo estimula o pensamento e a imaginação, elevando o patamar de abstracção. O design editorial é aquele que, quando bem sucedido, motiva a leitura e o interesse, diminui o atrito entre o leitor e o conteúdo da publicação, através de mecanismos visuais que estimulam o receptor da informação escrita (...).

29.10.09

1ºaniversário


Hoje o blog typographia comemora o seu primeiro aniversário. É facto que alguns conteúdos datam de 2005, mas só foram publicados após esta data. Quero aqui expressar a minha gratidão a todos os que tiveram a paciência de ler os minhas reflexões, que se deram ao trabalho de comentar, e que referenciaram os conteúdos, dando-lhes valor. Novos conteúdos e novas temáticas estão ser pensadas e escritas, e serão publicados em breve. As actualizações não têm sido muito frequentes, porque (felizmente) o trabalho não tem deixado espaço para a escrita. Contudo, poderão sempre ter acesso a pequenas novidades e referências no meu twitter. Mais uma vez, obrigado a todos, e continuem a ler e a fazer comentários, para ajudar o typographia a crescer.

24.8.09

doenças tipográficas


Já foi há 5 anos atrás que li a obra de Ellen Lupton "Thinking with type", e me deparei com uma espécie de DSM que explicava os sintomas que levavam ao diagnóstico de doenças tipográficas. Uma divertida análise de comportamentos que se são originados pela exposição e convivência com a tipografia. Recordando e fazendo alguns apontamentos empíricos de novos sintomas, vamos recordar estes distúrbios da saúde gráfica:

Tipofilia : Esta perturbação é caracterizada por uma fixação e fascínio excessivos pela forma das letras, que se manifesta pela exclusão de outros interesses de carácter objectual ou conceptual. A história da tipografia mostrou que pacientes que padecem deste mal acabam por falecer na maior pobreza e solidão. Outros sintomas conhecidos incluem a ICT (Identificação Compulsiva de Typefaces), havendo uma identificação compulsiva dos typefaces em todos os suportes com que o paciente se depara, levando a uma procura incessante caso não o consiga fazer.

Tipocondria : É caracterizada por uma crença e ansiedade persistentes de que foi seleccionado o typeface errado para um trabalho corrente. Este comportamento traz um comportamento paralelo de PKO (Perturbação de Kerning Óptico), que consiste no acerto compulsivo dos espaços entre as letras, como consequência da percepção distorcida no espacejamento dos caracteres.

Tipotermia, também conhecida como Politipogamia : O paciente que sofre desta perturbação é incapaz de assumir um compromisso com um único typeface, ou até 5 ou 6, como alguns médicos aconselham. Consiste no insistente uso de novos typefaces, muitas vezes sem licença adequada. Para mais, utiliza-os sem critérios e de forma excessiva, forçando e inventando motivos para o usar, sem contexto que o justifique.

Tipofobia : Trata-se do pólo oposto do uso da tipografia. Os tipofóbicos tendem a evitar o uso de letras de forma legível, utilizando dingbats, ícones ou pictogramas, como aversão à linguagem verbal. Em casos graves, são usadas bullets (balas) ou daggers (punhais). Para minorar e tentar controlar os medos e ansiedades (mas não curar), é aconselhada a posologia de pequenas doses de Times New Roman e Helvetica. Mais recentemente foi descoberto que o uso de Bembo e Univers poderão mostrar-se mais eficazes em casos dramáticos.

Tipoolismo : Estudos recentes demonstram que a tipografia poderá ser utilizada como tipefaciente, alienando os seus consumidores da matéria imagética no design gráfico. Esta perturbação induzida por intoxicação com caracteres tipográficos poderá levar a uma percepção distorcida de glifos, constatando serifas onde não existem, ou ligaduras entre letras. Em casos graves, o tipoólico utiliza typefaces fantasia pensando serem sans-serif, ou script como serif. O consumo de tipefacientes provoca dependência e em casos graves o paciente atribui todas as formas imagéticas à génese tipográfica, construindo as imagens com base nas formas das letras. O tratamento passa pelo uso de ícones e imagens em alto contraste a preto para recuperar a percepção formal, e utilizar tipos sans-serif.

Ainda no meu bom discernimento, posso afirmar e reconhecer com alguma franqueza que sofro destas doenças à excepção da tipofobia, mas que para já ainda não a um nível que precise da ajuda profissional. Um primeiro passo é reconhecer a doença. Esperemos que possa recuperar brevemente (ou não ;))



Para este artigo contei com a obra de Ellen Lupton "thinking with type" de onde surgiu a ideia original "Typographic Diseases" e um outro artigo do blog "I Love Typography" sobre "Typoholism"

10.8.09

veneza perdida


Qualquer bom livro sobre tipografia, paginação e impressão de livros, falará inevitavelmente sobre o período do Renascimento, e dos seus berços, mais concretamente Florença e Veneza, entre os séculos XV e XVI. Este espaço temporal é considerado indiscutivelmente como o período áureo da tipografia, em que soam nomes como Nicolas Jenson, Aldo Manuzio (também conhecido como Aldus Manutius) ou Francesco Griffo. Nomes que contribuíram para a história da impressão, paginação, layout e typeface design, embora ainda não se conhecendo ou definindo os termos, com o objectivo de contribuir para a proliferação do conhecimento para além das obras eclesiásticas. Estes nomes são responsáveis por muitas das noções que hoje temos e aos quais forma atribuídas designações que no campo tipográfico são tidas como base.
Jenson, que alguns historiadores colocam a hipótese ter sido discípulo de Gutenberg, era um francês que por ordem de sua majestade Charles VII se deslocou a Mainz, Germânia (Alemanha)alegadamente para aprender a arte da impressão com caracteres móveis, que Gutenberg desenvolveu. Já em Veneza, perto de 1467, Jenson desenvolveu caracteres tipográficos com um desenho único e inovador, baseado na escrita caligráfica adoptada já com influência das minúsculas carolíngias,utilizadas na documentação do imperador, com um carácter que foge do cursivo, e às quais é atribuída a génese do alfabeto em minúsculas, como hoje o conhecemos. Este design, que se distanciava claramente da influência gótica germânica, seria chamado de estilo veneziano, que possui características que, embora de personalidade caligráfica, se começam a afirmar como independentes da escrita manual. Em 1928, Bruce Rogers desenhou, para a Monotype, aquele que seria o typeface que ressuscitava este espírito, a Centaur, que ainda hoje é utilizada, devido ao seu requinte e propriedades de legibilidade. A Legacy, de Ronald Arnholm, também teve a sua inspiração nas obras impressas por Jenson.
Mais tarde, uma pequena obra de um pensador e erudito Pietro Bembo seria um pretexto para um novo desenho de um typeface romano, que Aldo Manuzio encomendou a Francesco Griffo, que como Gutenberg e outros contemporâneos, era ourives e utilizou a sua técnica para esculpir novos tipos. Por homenagem a esta importante personagem da literatura italiana, viria a chamar-se Bembo, e mais tarde dar origem à classificação de tipo Aldino. Com a sua perna alongada do "R", este typeface é utilizado ainda com frequência, graças à adaptação da Monotype, por intermédio e supervisão de Stanley Morison, em 1929, após contemplar a obra "De Aetna" de Pietro Bembo, impressa por Manuzio em 1495. É relevante dizer que o original não possui itálicos e que o desenho que hoje acompanha o romano é um itálico baseado no trabalho de Giovanni Tagliente, em 1520. Morison editou também através da Monotype, uma dupla de typefaces (Poliphilus e Blado), baseados nas impressões da obra Hipnaerotomachia Poliphili, considerada por muitos como a obra mais bela de Manuzio e dos livros do Renascimento, mimetizando inclusivé o borrar da tinta, mas comercialmente, singrou a Bembo. Griffo viria também a ser responsável pela concepção de um typeface com propriedades cursivas, e que poupava espaço,enquadrando-se perfeitamente no novo formato de livro proposto por Aldo Manuzio, que permitia uma produção mais rápida e acessível a mais pessoas. Criava-se assim o tipo itálico, e o formato de "livro de bolso". Curioso como chegamos à conclusão que foi apenas um motivo económico que causou tão evolutivo passo, assim como a Torre de Pisa inclinada, tão famosa, que surgiu apenas porque quando se concluiu a Catedral, chegou-se à conclusão que faltava uma torre sineira.
Outra curiosidade é que os dois tipos de alfabeto não eram usados como complementares, mas como distintos. Existiam livros em romano, e livros em itálico, como tive a oportunidade de contemplar em Roma. Só mais tarde foram utilizados em conjunto, mas ainda com "maiúsculas romanas". Para mais, quando eram concebidos os tipos, a família tratava apenas as minúsculas, porque as maiúsculas eram cruzadas com tipos existentes. Seria apenas Claude Garamond que viria a "inclinar" as maiúculas, já em França, debaixo da influência de Manuzio.
A Bembo viria a popularizar-se de tal maneira que os seus tipos viajariam para França, Holanda, e inclusivé Alemanha, e serviram de inspiração para a concepção de novos typefaces, até aos dias de hoje, o que comprova a eficácia e elegância do seu desenho.
Na realidade, o pretexto que me levou a escrever este artigo, foi um motivo de decepção. Nas cidades italianas que visitei, Firenze (Florença) e Venezia (Veneza), deste legado, já nada resta que seja acessível ao público, para grande desalento meu. A Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença, projectada pelo famoso Michelangelo Buonarroti, estava encerrada ao público, pelo que não pude ver as obras que tanto ansiava. Em Veneza, nem réstia de impressão, nem museus, nem antiquários ou livreiros. Não havia sequer cuidado no uso da tipografia na sinalética, como existia nas inscrições em Roma e Florença usadas para dar o nome às ruas. Só me pude contentar com a fachada da casa de Pietro Bembo, no Rialto de Veneza, que seria a inspiração de Aldo Manuzio. É uma cidade lindíssima e encantadora, mas a bela tipografia perdeu-se nos seus canais.


17.6.09

capa do desabafo

Responder à questão "Que programas se utilizam para paginar?", traz uma observação a fazer: podemos ter um computador com todos os programas conhecidos para qualquer área, mas trabalhar com eles é outra história. Na qualidade de designer, com predilecção no campo editorial, poderia afirmar que conseguiria fazer uma boa paginação utilizando o MS-Word, ainda que com constrangimentos. Uma luta que tento travar é a questão de que um livro não é apenas uma capa. É deprimente constatar que os livros são muito mal trabalhados a nível de paginação. Isto dever-se-á ao facto das editoras entregarem a paginação, e composição tipográfica às gráficas que irão produzir o livro, porque a capa já existe e "é só paginar". O livro, assim, não é entendido como um todo que faz sentido em todas as suas componentes, e quem ganha com isso são as gráficas, debitando sérios valores por um trabalho em que muitas vezes nem se utilizam ligaduras "fi" na composição, o que me deixa desiludido. Os livros não passam de show-offs de capas nas prateleiras.
Saber paginar requer sensibilidade e experiência tipográfica cuidada e desenvolvida e algumas vezes, alguma irreverência poderia ser uma arma de marketing para a obra, sem prejudicar a lecturabilidade da mesma. Todos beneficiariam com a intervenção de um designer editorial, designer esse que nunca poderia ser definido como alguém que sabe utilizar um computador, com um programa de paginação profissional, para paginar. Que aconteceria se alguém tivesse disponíveis os mais frescos ingredientes, mas não sabe cozinhar?

1.6.09

website

Um pequeno post apenas para anunciar que está disponível online o meu novo website, com portfolium actualizado. Poderá visitar o site em http://sandrolopes.com.sapo.pt.

30.4.09

pergaminho digital


Quando falamos de uma página hoje em dia, teremos de o fazer com cautela, porque já existem outros contextos que não o do papel. Durante muito tempo, o termo ‘página’ referia-se a uma superfície relativamente lisa e fina de papel, composta de pastas de celulose ou mistura de fibras, que já teve um parente ancestral de papiro, ou ainda de pele de animais, que servia de suporte à escrita caligráfica ou impressa. O objectivo último destes suportes escritos seria a disseminação do verbo, essencialmente como regulador dos processos comerciais, leis religiosas e mais tarde laicas. Contudo, o abrir de olhos do Renascimento levou o Homem a aspirar a fuga daquela era negra que foi a medieval, onde apenas era mero expectador forçado à resignação. O renascentista, que retirou a entidade religiosa do centro do mundo, colocando-se agora no seu lugar, tomou consciência do que o rodeava, procurando respostas para os fenómenos da Natureza que o circundavam e influenciavam, que não as que eram fruto de mera conformação, instituição dogmática e até monótona da religião. O antropocentrismo despertou então uma sede de conhecimento e partilha de informação (escrita) que provocaram uma epidemia cognitiva. A humanidade começava a deixar-se levar pela abstracção, e permitiu que a escrita lhes provocasse os pensamentos, e posteriormente os organizasse sob um código linguístico.
A necessidade de proliferação de sabedoria exigiu uma evolução de técnicas de produção de suportes e impressão, com o objectivo de disponibilizar o acesso às descobertas, pensamentos, leis, acontecimentos, que a escrita, (mais tarde aliada à gravura, ilustração ou fotografia) materializava e fazia chegar aos mais variados destinos e receptores, de forma relativamente inviolável e fiel (não nos esqueçamos das várias censuras que atravessaram a História), e que originou uma reacção em cadeia de exploração intelectual. Eis que a escrita passa agora a assumir um papel de “extensão” e amadurecimento do pensamento, mais do que um auxiliar de memória ou registo documental.
De esculpida, lapidada ou gravada, a pincelada e riscada, até à fase em que era uma face de metal tintada e pressionada que a materializava, a escrita tem simultaneamente acompanhado e provocado evoluções na forma como se apresenta ao seu leitor, quer em termos de processo de grafia, quer em termos de suporte. Há quem defenda, inclusivamente, que esta influência será recíproca, uma vez que sabendo o formato e natureza da superfície de escrita, a sintaxe, gramática, personalidade de discurso, tipo de ortografia, a expressão gráfica, e formatação serão condicionadas. Um exemplo disso será a coluna de um jornal. Cada jornalista sabe que dispõe de um determinado ‘espaço’ em caracteres e número de palavras para escrever, pelo que redige e organiza o seu texto em função disso.
Os primeiros suportes de escrita terão sido tabuletas de pedra, substituídas posteriormente por argila (a escrita cuneiforme dos Fenícios para além de existente em pedra e argila, existiu ainda em faces de ossos de animais). Mais tarde terá evoluído para o formato de khartés (volumen para os romanos), que assumia a forma de um cilindro de papiro, derivado de uma parte ‘libertada’ da planta (Liber libri, em latim, é o termo que etimologicamente daria origem ao termo ‘livro’, se bem que existe também quem defenda que a origem do termo ‘livro’ poderá estar relacionada com Byblos, nome da antiga cidade fenícia onde se comercializava o papiro, ou a Bíblia, pela sua fama enquanto livro mais reproduzido e publicado. A ideia de ‘livro’ esteve associada aos testamentos durante muito tempo.) que ia sendo desenrolado à medida que se lia. Quando existia mais que uma obra num mesmo papiro, seria designado por tomo ; desta forma, compreendemos a origem dos termos literários livro, volume e tomo. Uma vez que o papiro se tornava algo quebradiço, este viria a ser substituído pelo pergaminho (originário da cidade de Pérgamo, Ásia Menor), que mantendo o mesmo formato e sistema de leitura, trazia maior resistência, uma vez que era feito de pele de animais (todos nós já teremos a imagem mental de que as leis monárquicas seriam lidas em praça pública por um porta-voz, desenrolando um pergaminho), e que viriam a ser famosas e mesmo icónicas da era. Mais tarde, o formato de volumen daria provas de ser constrangedor, pelo que viria a ser substituído pelo codex, formato arcaico do livro como hoje o conhecemos, que reunia ‘páginas’, cozendo-as numa origem comum. Chegaram a ser de madeira e papiro, mas a sua fragilidade e baixa resistência justificaria o uso do pergaminho durante muitos anos. Em Roma, onde o códice viria a ser consolidado atingimos um patamar importante: o livro começava a ganhar a sua identidade própria, sendo associado a obra ao suporte. A Bíblia será um bom exemplo disso. Como é sabido, os códices foram durante muitos anos manuscritos por monges copistas que nos seus scriptoriums estariam encarregues de copiar, caligraficamente, obras na sua grande maioria religiosas, nas línguas ancestrais latim e grego. Os sacerdotes nessa altura eram privilegiados com a capacidade de ler, no entanto e curiosamente, existiam monges que nem sequer sabiam ler, apenas mimetizavam a grafia. Existe a possibilidade de que terão sido estes monges a construir aquilo que imageticamente conhecemos como uma biblioteca, onde prateleiras de lombadas forram paredes.
Os chineses, talvez um pouco negligenciados pela cultura ocidental, contribuiram fortemente para o seguinte passo evolutivo na história da escrita, mais precisamente nas técnicas e materiais de impressão. Bi Sheng, entre os anos 1041 e 1048 desenvolveu moldes de impressão de base cerâmica, os primeiros caracteres móveis conhecidos, é facto, mas que eram no entanto frágeis e não se revelavam eficazes para impressão em escala superior; para além disso, as tintas não eram compatíveis com o processo, sendo à base de água e por isso pouco aderente aos caracteres cerâmicos. Também o facto da linguagem chinesa ser ideográfica e não alfabética, e estar intimamente ligada à expressão gestual, fez com que o processo nunca fosse desenvolvido. Ts’ai Lun, por sua vez, terá desenvolvido aquilo que ainda hoje pode ser comparado, tanto materialmente como processualmente, ao que hoje entendemos ser papel: usando redes de pesca, trapos e posteriormente fibras vegetais (que contêm celulose), e submetendo-as a cozimento e esmagamento, obteria uma pasta que submergida e posteriormente esticada sobre moldes porosos, secaria ao ar, originando a folha de papel. Seria de uma qualidade refinada tal, que existem ainda spécimens originais nos dias de hoje bem conservados.
Seria a paixão pelos livros (manuscritos), e as suas qualidades de joalheiro que permitiram ao alemão Joannes Gutenberg o desenvolvimento dos famosos caracteres móveis de liga metálica, mais resistentes que os cerâmicos de Bi Sheng e as xilogravuras já utilizadas. Na sequência e exigência do processo, criaria a sua máquina de impressão, resultante de uma adaptação de uma prensa de uvas usada para fazer vinho, e melhoraria as tintas com recurso a um pigmento oleico de azeite, que permitiria uma melhor fixação da tinta às matrizes metálicas, obtendo uma impressão mais perfeita. Adicionando estes novos processos à tecnologia de produção de papel de Ts’ai Lun, Gutenberg semeava a esperança de livros mais acessíveis e de (mais) rápida concepção, tornando a literatura e o conhecimento mais fácil de alcançar e reproduzir (em conclusão, Gutenberg terá apenas desenvolvido e conjugado conceitos já existentes, e a sua famosa Bíblia de 42 linhas seria o fruto desta “invenção”).
Os incunabula, as primeiras folhas e livros concebidos exclusivamente pelo processo de impressão desenvolvido por Gutenberg, (ainda que nalguns se utilizasse xilogravura ou até ilustração pintada manualmente), seriam o passo evolutivo seguinte, e será apenas uma questão de tempo até as necessidades comunicacionais exigirem a ramificação para outro tipo de suportes: as newsletters (ancestrais dos jornais, ao contrário do que se possa pensar), folhetos, jornais e revistas que acompanharam e mais uma vez exigiram também processos evolutivos de impressão e suportes.
Chegados finalmente aos dias de hoje, constatamos facilmente que os media que nos fazem chegar informação utilizam os mais variados sistemas comunicacionais; não somos informados apenas através da escrita, nem através de papel, mas também formatos imagéticos e sonoros, analógicos ou digitais. Existe, inclusivamente, desenvolvida cada vez mais a ideia de papel digital, onde sobre uma folha, híbrida entre um monitor de computador e uma folha de papel, onde leds ou cristais líquidos, servem de suporte a correntes de bits e bytes de natureza electrónica, que são convertidos em imagens, formas e letras. Falamos de livros digitais, onde o que aparenta ter sido conservado são alguns elementos que se transformaram em metáforas objectuais: o formato de ‘códice’, ‘páginas’ que contêm informação, ‘letras’ impressas num monitor. Contudo, não é necessário pensar neste caso em particular. Com o fenómeno da internet, falamos de websites, ou sítios, cada um composto por ‘páginas’. Na mesma linha de pensamento, podemos comparar um website a uma revista, ou outra publicação impressa (relativamente ou não) periódica: terá normalmente uma capa com imagens e tópicos principais (um index em linguagem html), aos quais estarão atribuídos links que nos levarão a uma determinada ‘página’. Recordo que a noção de hypertext não é exclusiva do mundo digital: teve a sua génese no mundo e suportes literários. Sempre que existir, sob forma de nota de rodapé, índice propriamente dito ou bibliografia, uma referência que nos faça ‘navegar’ para fora do corpo de texto principal, será considerado um hyperlink em conceito. É natural hoje em dia existirem, e faz todos o sentido, versões online de publicações impressas periódicas tais como jornais online, porque o ojectivo de ambos é o mesmo: expandir a informação de forma mais actualizada e rapidamente possível. A rapidez do mundo moderno assim o exige. Poderemos falar de velocidade, complexidade ou reinterpretação, mas os conceitos basilares nunca deixaram de fazer parte da sua essência.
Para finalizar, outra constatação curiosa, que levou à escrita deste artigo, é que os websites aparentam ter regredido em formato: tratam-se, na realidade, de um codex de pergaminhos ou um volumen. Recordo que scroll significa pergaminho, e que ao ‘fazer o scroll’, rodando o mouse wheel ou arrastando a scrollbar, estamos a desenrolar um pergaminho, percorrendo os seus tomos. Afinal, será que evoluímos tanto assim?

11.3.09

design(er)


Conhecido como ‘criativo’, o designer é para muitos aquela pessoa que ‘tem jeito para o desenho’, ‘faz bonecos’, ou um ‘gráfico’ que ‘desenrasca uns logótipos’. Sempre me foi (e continua a ser) difícil explicar o que faz um designer aos demais de gerações anteriores e de ofícios tradicionais, e nesta área, são muitos os que conheço que partilham da mesma sensação. Mas afinal o que é o ‘design’? O que significa ser ‘designer’? A associação recorrente sugere uma actividade relacionada com o desenho, mas desenhar com que objectivo? É de facto uma ferramenta essencial mas não é bastante para definir o seu processo e a sua metodologia, ou perceber os carris sobre os quais se desloca.
De um modo sintético e algo superficial, o designer encontra soluções para necessidades utilitárias e comunicacionais de forma original e inovadora, através da metodologia projectual, recorrendo ao desenho e outras formas de expressão para materilizar os resultados do processo imaginativo, segundo os parâmetros contextuais em que o projecto decorre. Mas quais os fundamentos e princípios sob os quais esta disciplina se rege? Ainda que se possam argumentar algumas vertentes, filosofias ou tendências que servem de linha condutora num curso de design de uma determinada escola, existe em comum o objectivo de incutir princípios que circulam em torno de duas premissas essenciais: a funcionalidade e a estética. Segundo estas, função remete para a necessidade de resolução de problemas ‘utilitários’; estética para as questões da forma, que sendo a uma componente mais subjectiva, dá origem a debates sobre o gosto e a (re)definição do belo. Quem critica ou ensina, recorre muitas vezes à expressão "funciona", como forma de distanciamento da sua posição pessoal em relação a uma proposta de projecto apresentada ou em curso, mas a verdade é que nunca nos distanciamos totalmente do gosto na avaliação dos trabalhos. Os clientes fazem-no de um modo macroscópico, muitas vezes sob preferências que nos soam ridículas ou despropositadas, mas entre designers, ou docentes e alunos, a discussão ganha uma intensidade maiúscula de pormenor microscópico. É verdade que o design vive dos detalhes, mais ou menos subtis, e esta constatação faz-me questionar os princípios da Gestalt recorrentemente. Mas falava de função. Muitos designers e entendidos nas matérias do design e adjacentes afirmam solenemente que para o design existir, ou iniciar a sua intervenção, necessitamos de uma necessidade (passo o pleonasmo). "To whom is design adressed to?" – perguntavam os Eames, ao que estes respondiam: "The need". Uma resposta talvez "politicamente correcta", já que a condição insatisfeita do Homem, independentemente do seu contexto cultural, geográfico ou tudo o que o possa classificar ou etiquetar, produz sempre uma necessidade. Mas a questão da utilidade é alvo de muitas reflexões e discussões.

Um designer não é um artista, e afirma-se que uma das diferenças entre um designer e um artista, é precisamente que o que um artista produz não é "útil". Discordo, uma vez que a Arte é tão documental como a própria história; existe desde que o Homem “é homem” e representa a sua expressão em tantas formas possíveis. Trata-se de uma forma de comunicação que explora os mais variados códigos e tenta inclusivé reinventá-los, por isso se torna tão difícil de descodificar. E se não se descodifica, não se compreende o seu conteúdo e a veiculação do mesmo, pelo que não se reconhece a sua ‘utilidade’. E é aqui, julgo, que as coisas se separam. O design pede emprestadas as técnicas de representação e expressão artísticas para trabalhar a componente comunicacional do design. Se as técnicas são úteis para o designer com o fim de trabalhar o medium através do qual de veicula a mensagem que se pretende transmitir, então entra-se em contradição quando se afirma que a arte não é útil. Existem, no entanto, tentativas de “dar utilidade à arte” tornando-a aplicada, através do ornamento do objecto, e é aqui encontramos um outro ponto de dispersão: o design não deve ornamentar o que já existe, objectualmente falando, porque a questão funcionalista deve fazer parte da concepção.
O design defende que se concebe um objecto para que este seja usado e não meramente contemplado, no entanto, existem várias formas de arte cujo propósito é efémero e se baseia na interacção instantânea, na cinética, no momento, alvejando a ideia de obra de arte intemporal, de culto e contemplação. Outra premissa defende que antes de tudo tem de ser cumprida a função (utilitária); apenas depois poderá ser inserido o valor ‘acrescentado’. Outra ambiguidade, já que assim a intervenção do designer aparenta ser tardia, mas reparemos no seguinte: o valor acrescentado poderá ser apenas na técnica de concepção, e não se materializar ou revelar aparente. Isso é coerente com a ideia de que o ‘bom’ design é aquele que optimiza a produtividade e aumenta a qualidade. Trata-se de fazer alterações subtis no processo de produção que permitirão essa optimização. Este pensamento revela a função industrial do design, que se distancia da arte. O artista idealiza, visualiza e concebe pelos próprios meios uma obra de arte única e inconfundível, ainda que nalgumas circunstâncias seja propositada a ausência do artista no processo de concepção. O designer trabalha segundo a metodologia do projecto, onde ‘prevê’ a forma final e as suas características físicas, salvo raríssimas excepções. No processo desta metodologia, o designer passa o testemunho do projecto com indicações e requisitos para que outrém produza a ‘sua peça’, e ainda que possa ser ‘assinada pelo seu criador’, será reproduzida vezes sem conta. É única ‘no seu desenho’, mas também é única para todos os que o queiram e possam adquirir.

Onde começa a intervenção de um designer? Idealmente, a função do designer surge com a necessidade de um público-alvo, que é detectada por estudos de mercado, e que poderão impelir uma empresa a criar um produto ou serviço para responder a essa necessidade. Se assim o entender, e empresa investirá num designer para projectar, em consonância com os recursos da empresa ou que esta poderá subcontratar, um produto ou serviço para responder às necessidades detectadas. O designer idealiza, colocando hipóteses e usando a sua imaginação e a ferramenta do desenho para tentar ‘vender o projecto’. São analisados meios para que possa ser executado, e depois acompanhará o desenrolar do processo, muitas vezes tendo de voltar atrás para corrigir algumas imperfeições ou detalhes que tecnicamente se tornam difíceis de concretizar. Quando finalmente é produzido, dará entrada no mercado pelo meio mais adequado ao seu público-alvo, que depende inevitavelmente da natureza do produto. É importante dizer que o designer poderá criar o produto novo, mas pode dar-se o caso de apenas ter de comunicar para o promover, uma vez que o produto ou serviço não se enquadra nas competências do designer, como produtos gastronómicos, por exemplo, ou de bases químicas. Ainda assim, quando o trabalho não é apenas entregue a uma agência para se conceberem suportes comunicacionais, o designer fará parte de uma equipa, e sendo um elo da corrente, não trabalha sozinho e independente. No seio de uma empresa, nomeadamente de produção de equipamentos, o designer deverá absorver todas as informações, filosofia e competências possíveis do seu ambiente, para que faça parte dele e utilize de forma optimizada os recursos da empresa na execução do projecto.
O trabalho do designer é, na realidade, avaliado pelo público-alvo a que se destina, e muitas vezes poderá falhar o seu objectivo. Quando um trabalho “sai à rua”, existem as mais variadas observações por parte da concorrência e de críticos que se movimentam nesta área, pelas mais variadas razões, mas os estudos de mercado do impacto do produto é que ditarão a sua sentença. Com sorte, o processo e o produto poderão vir a constar nos anuários de design, e vir a ser um showcase para estudos de ‘como fazer bem’, contudo, não nos esqueçamos que coloquei a hipótese de o trabalho ser conduzido em factores ideais de execução e ser bem sucedido.
A justificação para a existência do design é muitas vezes nada mais que ‘económico’ ou ‘comercial’, embora muitas vezes em certos ramos do design isso pareça difícil de discernir. Mais uma vez, falamos das diferenças entre o designer e o artista. O artista ‘não necessitará’ das regras do mercado para existir, embora tenha o seu próprio mercado. Quando penso, porém, em mercado, penso quase automaticamente nas linhas quebradas dos gráficos apresentados nos monitores das bolsas de valores, remetendo-me para a inconstância e efemeridade do tempo comercial. Talvez este ‘tempo comercial’ seja o principal responsável pela procura incessante de novas soluções, de inovações, e é comprensível que assim seja, porque a sociedade evolui e com ela as suas necessidades vão também “evoluindo”. Porém, consequentemente, a dita inovação é apenas ilusória e trata-se apenas de uma inovação aparente, que nada traz de novo “funcionalmente falando”, a não ser a resolução da questão da cansada monotonia visual. Como exemplo, a renovação de uma identidade corporativa deve ser reflexo de uma metamorfosse estrutural no funcionamento e filosofia da entidade, nos produtos que esta oferece, um novo posicionamento, expansão de mercado, etc., e não apenas mudar a sua aparência. Ainda assim, devo reconhecer que responder à necessidade de escapar uma fadiga de imagem que se tornou monótona ou antiquada, na realidade não deixa de ser também um motivo válido.
Olhando um pouco para trás na História, a razão da existência do design aparenta prender-se-á à criação de soluções ‘funcionais’. Numa Europa devastada pela guerra em meados do séc. XX, era necessário encontrar soluções que se integravam na optimização dos poucos recursos que restavam, de uma forma rápida e eficaz, para que a indústria pudesse desenvolver e acompanhar. Penso inclusivamente que a redução do ornamento nas várias áreas era justificada precisamente por ser incompatível com a indústria, como o próprio Eric Gill reconheceu na sua época, e isso terá influenciado a noção do belo, que terá sido mais aproximada à função, destilando as formas, reduzindo os apêndices ornamentais atingindo as formas canónicas, na maioria das vezes resultando em objectos de geometria acentuada, mais compatível com a optimização dos processos industriais. [O famoso Estilo Suiço ou Internacional, cujo embaixador foram os typefaces sans serif, nomeadamente a Helvetica, era protagonizado pela simplicidade e acentuação de estrutura que a meu ver, terá sido o resultado de uma evolução lógica.]
Os artesãos que construiram as catedrais eram ‘artistas’ na sua área e trabalhavam directamente a sua matéria. Este processo atravessava gerações e é incomportável numa sociedade industrial crescente. Ora, é sabido que a industrialização acarreta a sectorização da produção, o que faz com que o objecto seja cada vez mais afastado do seu criador. Esta constatação também afasta o designer da ideia de artista. O artista trabalha a sua matéria directamente do princípio ao fim. O designer não tem outra solução a não ser o método do projecto, porque este dará as indicações a outros de como produzir ‘a sua obra’. Toulouse-Lautrec ainda terá trabalhado num processo transitório para fazer os seus cartazes, mas hoje em dia, (em regra) desenha-se um cartaz utilizando um computador com software de desktop publishing e tratamento digital de imagem, exporta-se um ficheiro de produção, que será entregue a uma gráfica em suporte magnético ou utilizando a internet, passando pela pré-impressão, fotolitos ou CTP, passando numa máquina de impressão offset para imprimir com tintas que outros produziram, em papéis que são resultado final de um outro processo industrial complexo. Seguidamente, irá à guilhotina, será embalado, armazenado, transportado e finalmente entregue ao cliente (que normalmente não é o público-alvo, mas o intermediário que poderá ser uma empresa que pretende promover um produto, evento ou serviço), que ainda irá entregar os cartazes a quem distribuirá e colocará estrategicamente nas paredes. Um exemplo prático que denota o longo caminho percorrido, no qual muitas vezes se perde o rasto do objecto projectado, encontrando-se mais tarde por acaso, ou no limite, nunca se chega a ver colocado. Posto isto, fica a ideia que o designer está integrado num processo industrial complexo, que responde às necessidades de uma sociedade exigente que se movimenta a um ritmo extremamente veloz.

As ‘necessidades’ hoje em dia são complexas, e quando se fala de funcionalidade enquanto resposta a estas necessidades temos de ter em atenção aquilo que se entende por função. Penso que a definição de funcionalidade tem vindo a evoluir desde o contexto em que a Bauhaus o defendia. A noção de função remete para a estrutura industrial e de mercado, relacionada com a economia e eficácia das soluções utilitárias encontradas, através da optimização de processos e materiais; mas o que distingue o objecto criado pelo design do engenho é a atribuição de outros valores como a fruição e empatia. Não se trata de conceber um objecto (entenda-se objecto como produto, ou serviço) para responder funcionalmente a uma necessidade utilitária, mas também para responder a necessidades que um ramo da psicologia designou por superiores, na medida em que respondem a necessidades emocionais, intelectuais ou culturais. A questão do quão é ‘agradável’ a ‘utilização’ de um objecto, a forma como o seu público-alvo se relaciona com esse objecto é uma premissa que deve ser equacionada aquando o desenvolvimento de um projecto. Uma coisa é beber água porque se tem sede, outra é beber uma água com gás que possui um sabor distinto, que se usufrui com prazer num copo esteticamente apelativo, num determinado ‘ambiente em que faz sentido’. A publicidade hoje em dia não vende ‘apenas’ o seu produto, mas os contextos em que o produto poderá existir, e os valores que lhes são atribuídos e que contribuem para o seu posicionamento, como o estilo de vida que lhe está associado, com o qual a pessoa se identifica ou ambiciona ter. As necessidades são então ‘provocadas’ pela insatisfação constante do ser humano, seja por fuga à rotina, seja por uma questão de valorização da auto-estima ou de uma imagem social, entre outras, que o marketing explora. Escusado será dizer que os valores éticos e políticos são sempre discutidos, mas acredito que o design trabalha para um público-alvo respeitando e tendo sempre em consideração as suas crenças culturais, religiosas etc., sem pôr em causa os seus próprios valores. Sendo livre, poderá sempre recusar fazer algo em que não acredita, mas nunca deve impôr de uma forma dogmática os seus pontos de vista nos projectos. Isto recorda-me a vulnerabilidade que o design possui por não ser uma ciência. A ciência é justificada e creditada pelo método científico, que defende uma lei que poderá sempre ser comprovada em qualquer altura, indefinidamente. Mas num projecto de design, o resultado final nunca poderá ser 2+2=4, como a matemática nos diz. Não existem fórmulas para obter os resultados, porque estes dependem inevitavelmente das condicionantes do projecto, e de quem o executa. O objecto final do design é uma solução possível, que nunca agrada a gregos e a troianos simultaneamente. Tem de agradar sim, o público-alvo, todavia, muitas vezes no encaminhamento do processo criativo surgem imposições que poderão sabotar a intenção do designer, porque o cliente do projecto não é o público-alvo. O intermediário que encomenda o projecto, se não se basear em constatações de mercado, considerando apenas as questões empíricas ou ‘gosto pessoal’, corre o sério risco de fazer com que o projecto não cumpra os seus objectivos e, para piorar a situação, muitas vezes não reconhece a sua culpa. Isto é reflexo da ignorância do papel do designer que, sendo muitas vezes confundido com um operador de software, que apenas resolve ‘tecnicamente’ o projecto, não lhe sendo dado o devido crédito ou confiança para executar o projecto segundo os parâmetros que este acha adequados. Isto talvez seja mais flagrante no design gráfico, mas acredito que todas as áreas do design padecem deste mal.
Um designer gráfico (ou de comunicação, sendo uma nomenclatura mais abrangente e correcta), aparentemente, possui uma responsabilidade social inferior à de um arquitecto. É verdade que se o projecto habitacional correr mal por imposição de critérios de um arquitecto e o engenheiro civil não for autorizado a corrigir esses caprichos, se a estrutura ruir, as consequências serão graves, porque se trata de um atentado à vida dos habitantes dessa edificação. Mas o arquitecto é um designer (apesar das tentativas de distanciamento, argumentadas pelo objectivo não-industrial de replicação e tantas outras infudamentadas). Trabalha num contexto projectual com uma escala e longevidade muito superior às de um designer e com um nível de impacto social muito maior, mas na realidade, a metodologia é semelhante e o público-alvo é também a sociedade, as pessoas (ironicamente, a arquitectura em certo ponto necessita do design para ser complementada e ainda que a escala de um arquitecto seja global, a nível de mobiliário, por exemplo, um designer de equipamento estará melhor habilitado para o fazer. Para além disso, o design de comunicação ajuda a dar a conhecer o edifício, urbanização, etc. e a promovê-lo e ao estilo de vida que lhe está associado. Seria justo dizer que as áreas são complementares, mas a filosofia unificadora). Imaginando uma situação algo extrema, o uso de códigos visuais desadequados em suportes comunicacionais, nomeadamente de ordem política, poderão ter impactos tanto iguais ou superiores, por consequência, aos de um arquitecto. É possível criar um tumulto político apenas com um erro tipográfico, ou uma imagem desadequada às crenças de uma cultura, o que pode no limite, provocar uma guerra. Outras formas de design de comunicação utilizadas em propaganda política, canalizam mensagens que movem as pessoas no sentido da entropia ou da homeostasia (recordemos o impacto da imagem Nazi, ou da propaganda comunista soviética e chinesa).

O design é, por tudo o que já vimos, uma disciplina antropológica. É um trabalho humano que lida com valores humanos e por assim ser, tem a legitimidade de errar. Existem, contudo, consequências. [ Uma coisa que considero importante, é a obrigação que um designer tem de estar atento à escrita e aos erros ortográficos, não se podendo desculpar com o facto de só trabalhar com ‘imagens e aspecto das coisas’. Isto porque o cliente ficará com a imagem denegrida se nos suportes comunicacionais existirem erros que denotam alguma negligência, e que poderão alterar inclusivé o significado da mensagem que se pretende canalizar. Para além disso, muito provavelmente, a culpa da má mensagem é atribuída ao cliente e não a quem concebeu o suporte, se bem que há quem se refugie na ‘aprovação do cliente’. As palavras, e a escrita, fazem parte do design de comunicação em todas as suas vertentes, e nunca devem ser tratadas como apêndices supéfluos e algo que deve constar porque ‘tem de ser’. A tipografia é uma peça essencial, na medida em que é possível conceber um cartaz usando apenas recursos tipográficos, mas não se poderá fazê-lo usando apenas imagens. Existem elementos que existem apenas sob forma de letras, palavras, números ou conjugação de ambas, e isso é incontornável. Mesmo tentando o exercício de escrever com imagens, a ambiguidade não produz uma comunicação rápida e eficaz.] Mas o que pode ser erro para uns, é o que está certo para outros, e é esta a realidade com que o designer tem de lidar. Todos os designers são pessoas com as suas opiniões, perspectivas e formas de trabalhar, daí que um mesmo projecto seja alvo de várias interpretações e tenha resultados diferentes. Porém, o diferente não é necessariamente oposto ou errado. Existem regras sociais que devem ser tidas em conta, que assumem a forma de códigos visuais, as várias definições do belo, crenças culturais, e são essas as restrições que afunilam as possibilidades. Talvez possa afirmar que o design de comunicação trabalha segundo parâmetros de uma ergonomia mental, em que o objectivo será optimizar a percepção e entendimento, e nem sempre essa optimização implica velocidade, mas a apreensão e compreensão da informação de uma forma completa. O design de equipamento, industrial, e outras formas de design que sobrevivem fora do posicionamento cartesiano em duas dimensões, trabalhará com ambas as formas de ergonomia, mas não lhe são exclusivas.

O designer é rotulado de criativo, no entanto não é um mágico que ‘faz aparecer soluções para tudo’. O timing da intervenção é importante porque se tudo corre mal, não numa etapa final que o designer resolverá o problema. Ele deve fazer parte do processo desde o início, ou pelo menos lhe ser dado um briefing adequado numa fase em que é possível alterar decisões basilares ou retroceder o processo se necessário. Para além disto, a questão do briefing e do contexto de actuação são de extrema importância. O designer deve ter a noção dos elementos que dispõe para trabalhar, tendo em consideração o público-alvo a que se destina, sempre que possível reduzindo a influência da sua subjectividade. Para mais, a tão falada ‘inspiração’ não é mais que a absorção de todo o tipo de elementos imagéticos, culturais, técnicos, etc., que lhe permitem ter uma bagagem intelectual que possa despoletar a criação. A criação é um processo inteligente que não existe no vazio: o acto criativo resulta da articulação e conjugação de todos esses valores, competências e valências em complementaridade, que são validadas no contexto em que projecto foi solicitado, conferindo-lhe assim o laboratório que necessita para experimentar, e testar as potencialidades e constrangimentos. São estes os reagentes que o designer necessita para trabalhar e, nesta linha de pensamento, posso afirmar em conclusão que existe uma certa química relacionada com esta actividade ‘híbrida’: o design é o produto da reacção entre o engenho e a arte. Estas são intensidades que se debatem, que medem forças, mas que na realidade são complementares. No final, serão soluto e solvente em equilíbrio numa solução que deu resposta a um projecto, pela conjugação das suas valências. Se o engenho resolve a função utilitária, a arte apela aos sentidos e emoções, tornando a interacção com o objecto mais humana, dotada de empatia e fruição, contribuindo para uma melhor relação com o público-alvo, saciando as suas necessidades de uma forma homogénea e global. Introduzo, desta forma, outra característica do design: o processo.
Até há relativamente pouco tempo, os designers ‘derivavam’ de outras áreas como a arquitectura, engenharia mecânica, pintura, escultura, etc., que ousavam tocar aspectos que resvalam os objectivos dessas profissões. Curiosa e pertinentemente, os docentes dos cursos de design e alguns designers que hoje são de renome são oriundos dessas profissões, e ainda hoje estas metamorfoses acontecem. Afirmando que fez sentido que assim fosse, qual será a relação dessas actividades com a actual ‘disciplina autónoma’ do design? Pois bem, não é apenas do design que trabalha sob a metodologia do projecto, uma vez que a arquitectura, engenharia mecânica, civil, etc., utiliza o desenho técnico e o software CAD para projectar, e sabemos o rigor e precisão que estes processos envolvem, porque o erro mais pequeno poderá ter consequências graves de resultado final. Destas, apenas a arquitectura desenvolve os aspectos estéticos aquando a execução do projecto, porque o conceito urbanístico e as suas propriedades comunicantes aparentam ser precedentes aos aspectos técnicos propriamente ditos. A arquitectura, à semelhança do design, utiliza ferramentas artísticas para dotar uma edificação de significado humanístico, e pensa as soluções dos projectos entendendo os seus critérios como uma questão antropológica, e não mecânica ou industrial; e é este pensamento que terá sido herdado pelo design.
As artes, por sua vez, exploram as formas de expressão, comunicando através dos canais mais divergentes, na tentativa de utilizar suportes e códigos alternativos aos convencionais, tais como a linguagem verbal, com o objectivo de criar estímulos intelectuais e emocionais que permitam ao receptor da mensagem recebê-la de uma forma inédita, provocante e menos passiva. Este processo é também útil ao design, uma vez que a originalidade, complementaridade e globalidade delineam os seus objectivos.
Uma outra característica curiosa é o ‘tempo’ em design. O designer lida com uma realidade objectual conceptual que o transporta para um tempo futuro que ainda não existe, onde o objecto não foi ainda materializado. Daí que seja necessário recorrer a ferramentas de expressão e representação que simulem a sua materialização, tais como o desenho, pintura, escultura, hoje em dia os programas de simulação tridimensional, ou software que utiliza a metáfora do desktop, transformando o seu estirador e secretaria num ambiente digital com possibilidades que transcendem as técnicas artísticas convencionais. (Existem, contudo, consequências negativas desse afastamento da matéria, tais como o condicionamento da expressão, ou desconhecimento dos processos posteriores à entrega o projecto.)
O desenho, técnica de expressão essencial nesta actividade, é na realidade uma extensão cognitiva, na medida em que auxilia o designer a perceber as lacunas do seu pensamento, imaginação e exequibilidade, tal como os cálculos escritos auxiliam um matemático a encadear os seus raciocínios. Curiosamente, existem muitos cientistas que tiveram necessidade de depurar as suas capacidades de representação para ilustrar as suas descobertas e colocar as suas hipóteses. Leonardo Da Vinci é um bom exemplo disto, e creio ser talvez o primeiro designer, tal como o definimos. Isto remete-me para a colaboração da ficção científica com o design. Ideias que poderão surgir que necessitem de inovações tecnológicas e científicas para serem exequíveis encontrando no design a vertente de estímulo para outras áreas. Posto isto, quando nos é solicitado que ‘inventemos’ uma solução, talvez não seja assim tão errado.
Todos estes aspectos levam à constatação de que o design resulta da hibridação das metodologias e filosofias de várias actividades, que aparentemente poderão parecer distantes. Coerente com a ideia de que a criação não poderá existir no vazio, entendemos agora a necessidade que o designer tem de absorver todos os elementos que o rodeiam, porque o seu trabalho resulta da conjugação de valências das mais variadas origens. Uma analogia que acho deliciosa é o facto do designer ser como um chef de cozinha: alguém que escolhe ingredientes pela sua qualidade, frescura e atributos, para depois articular e conjugar cores, texturas, aromas, ácido e doce, tudo na dose certa, para que todos os elementos possam ser apreciados em conjunto, como complementares e, no final, ‘empratar’ a solução de forma a que todos os sentidos possam ser provocados, dando ao público-alvo uma experiência agradável de fruição e plenitude, num ambiente propício, saciando a sua fome e satisfazendo os seus desejos.

13.2.09

química do design

Design é o produto da reacção entre a arte e o engenho.
Intensidades que medem forças, mas que no final, não serão mais que soluto e solvente em equilíbrio numa solução.

Design is the product of the reaction between art and ingenuity. Both intensities measure strength, but in the end, they'll be solute and solvent at equilibrium in a solution.

9.1.09

erosão tipográfica


Em tipografia, tal como qualquer projecto em design, é muito importante considerar o medium através do qual um texto é veiculado, e o contexto processual a que este será submetido. As exigências de leitura são diferentes num website e num jornal, um cartão pessoal ou outdoor, e os processos de produção e restrições técnicas são também diferentes, e influenciam os critérios de tratamento dos textos. Em design e nas artes visuais falamos de cor, mas a cor tem duas (no mínimo) vertentes de análise: a cor-luz e a cor-pigmento. É simples de entender que a “mesma” cor em dois suportes distintos que são a página de papel e o monitor de um computador, será reproduzida de forma diferente também. Não se liga uma folha de papel à corrente eléctrica, assim como não pintamos um monitor de computador com aguarelas. Falamos de dois mundos distintos e duas linguagens distintas. No contexto de uma página web, quando queremos falar de cor diremos qualquer coisa como: “R123G025B255” ou “#c3g4d5”. RGB significa Red, Green e Blue, que são as cores que combinadas e somadas originam qualquer cor dentro do espectro visível. Isto é o processo aditivo da cor. A luz branca é composta por radiações electromagnéticas de comprimento de onda variável, que estimulam os nossos receptores sensoriais do olho, cones e bastonetes. Existem 3 tipos de cones, cada um sensível a uma “das cores luminosas RGB” e descodificam as cores através da combinação de estímulos. Os bastonetes reagem à intensidade luminosa, mas não distinguem as cores. (De notar que esta explicação é muito sumária e poderá ser dada como incorrecta pelos entendidos). A segunda designação corresponde à tradução para linguagem binária originada pelo RGB, para utilizar na Web, como o html, para ser descodificada por qualquer browser.
Por outro lado, existe a cor-pigmento, originada por subtracção de cor. De uma forma muito simples, poderei ilustrar isto utilizando o exemplo da folha de uma planta. O que lhe dá a cor verde são pequenos pigmentos verdes designados por clorofila, da mesma forma que o sangue é vermelho porque as hemácias que contém são vermelhas. O processo é semelhante ao pontilhismo. A soma e concentração de todos esses pontos de cor dão-nos a intensidade e “código” de cor final. O que é mais complexo de explicar é que, na realidade, a cor que vemos é a que não foi absorvida. Os corpos absorvem as radiações electromagnéticas que se encontram na luz branca, e as radiações que não são absorvidas são as que percebemos. E isto é muito enganador. Empiricamente poderemos determinar que, ao contrário do que o que julgamos, a cor vermelha é a menos intensa de todas, e o roxo, no outro lado do espectro é a radiação mais forte. A radiação electromagnética da luz de uma vela é bem mais fraca que a luz de um bico de gás no fogão. O que é estranho, em conclusão, é que as cores a que atribuímos o valor “frio”, química e fisicamente são as mais “quentes”. Basta pensar nos UV. No mínimo curioso, não?
No campo do design gráfico trabalha-se, diria talvez em 80% com o processo de impressão OffSet, e existem duas formas de trabalhar em OffSet: com cores directas, Pantone (mais frequente, mas não únicas), e quadricromia, ou seja, a combinação de 4 cores primárias CMYK (Cyan, Magenta, Yellow e Black), que combinadas segundo concentrações de ponto e impressas em redes desencontradas em ângulo conseguem obter uma grande variedade de cores. Existem cores Pantone que têm equivalência em CMYK, mas nunca deixa de ser aproximado. As cores directas são combinadas quimicamente para se obter uma tinta uniforme, e algumas possuem atributos de luminosidade com graus de radiação (fluorscentes) e outras com pigmentos metálicos, que obtém uma sensação de superfície metálica, quando impressos. São muito variados os processos de impressão, todos com as suas particularidades e potencialidades, mas é preciso controlo, experiência e erro, para a dominar e saber tirar o melhor partido delas.
Apesar da introdução alargada, era necessário distinguir estas noções de cor, porque vão obviamente influenciar o tratamento tipográfico e imagético. Uma “cor” que ainda não falei, mas que é uma premissa importante, é a “cor tipográfica”. Esta cor na realidade corresponde à intensidade de mancha, mais do que gama cromática propriamente dita. Esta intensidade de mancha varia naturalmente com a natureza do typeface, e da sua gama de pesos. Utilizando a Univers como exemplo, actualmente na versão 3.0 da Linotype, constatamos que esta possui pesos de muito fino a muito grosso, de 130 Basic Ultralight a 930 Basic Extrablack (de notar que a família modificou a sua nomenclatura em relação a famosa Grelha de Frutiger original, em que os limites se situavam entre 45 e 85 (formas regulares)). Não será preciso dizer que o uso destes pesos farão variar as intensidades de mancha dos textos a compôr. Nos tempos remotos da impressão renascentista, apenas se dispunha de maiúsculas, itálicos (mais tarde), versaletes, e tamanhos de corpo para criar ênfase e hierarquia. Hoje em dia podemos combinar typefaces diferentes, e cada um deles com os mais variados atributos dentro da família. Uma família extremamente completa neste campo é Thesis, de Lucas de Groot, que possui 144 formas, de sans serif, mix, serif, antiqua, smallcaps e respectivos itálicos e pesos de extralight a extrabold. Há para todos os gostos e utilidades.
Durante muito tempo, a tipografia apenas contava com duas ou três cores: preto, que ostenta a maior tradição de impressão, mais tarde o vermelho, e muito raramente o dourado, mas que se encontrava nas Incunabula, normalmente pintados à mão. Hoje em dia, a gama de possibilidades é infindável.
No entanto, o que gostaria de frisar é uma questão mais prática. Não é novidade que necessitamos do contraste forma/fundo para ler, sejam palavras ou imagens, mas que um grande contraste contribui muito para isso, razão pela qual é “mais natural” encontrar texto a negro sobre fundo branco (descartando as questões económicas, claro). Só mais recentemente se brinca e abusa dos cinzas, e de uma forma perigosa para a tipografia. O texto impresso em offset é sensível a uma questão técnica aparentemente simples, mas que já constatei ser negligenciada. A resolução de impressão normal de uma peça gráfica é de 300 dpi (imaginemos 300 pontos de tinta no espaço de um polegada) e as escalas de cinza são dadas por “redes”, o que significa que se reduz a concentração de pontos nesse espaço. Uma escala de cinza de 50% significa que obteremos 150 pontos de tinta no espaço de uma polegada, ou seja, que o branco começa a ganhar presença, e que o olho é levado a perceber menos intensidade de cor. Isto é a forma que existe que dar uma tonalidade mais “clara” a uma cor. A alternativa é seleccionar uma cor mais clara de um catálogo cromático de cor directa. E é aqui que entra a diferença. Uma cor directa (a 100%) produz uma mancha uniforme que cobre toda a sua área de impressão. Um Pantone cinza claro não é o mesmo que um cinza claro impresso em quadricromia de cor preta. A cor cinza em quadricromia utiliza redes de preto que resulta na abertura de pontos sem impressão na superfície tintada. Isto é visível nos jornais. Com um conta-linhas, ou um lupa, podemos perceber que as fotografias (a preto e branco, claro) são construídas por ‘pontilhismo’ de pontos pretos, em concentrações desiguais que produzem manchas mais ou menos fortes, dependendo dos valores cromáticos e sombras da imagem.
Mas afinal onde quero chegar com tudo isto? Vamos admitir que trabalhamos apenas com a cor preta, mais frequente no tratamento tipográfico. Se eu quiser dar mais “leveza ao texto”, e torná-lo “menos preto”, que se deve fazer?
Como já vimos existem várias formas de dar intensidade visual ao texto: a escolha do typeface propriamente dito, as “históricas” maiúsculas, itálicos, versaletes, os pesos e a escala. Aquela que é mais flagrante é a do peso. É lógico perceber que um peso black terá muito mais impacto que um peso light, mesmo com diferenças de escalas algo acentuadas. Mas o que preocupa é a má utilização da família tipográfica. Vamos imaginar que queremos compôr um texto mais ou menos extensivo no typeface Univers: seleccionaríamos um corpo entre 9 e 11pt, com uma entrelinha calculada em função do corpo, digamos 9/12pt, uma vez que não sendo serifada e tendo uma altura de x razoável, precisamos de alargar um pouco a distância entre as linhas para ajudar a leitura. Até aqui tudo bem. Agora necessitamos de dar ênfase para títulos, e usamos, por exemplo, o peso bold para contrastar. Nem precisamos de dar escala, porque é notória a diferença, mas são várias as opções. Agora coloca-se um problema. O texto é traduzido e convive no mesmo espaço – trata-se de uma publicação bilingue. Ok, precisamos de distinguir o texto um do outro, e é aqui que a coisa se complica. Mais uma vez são várias as opções, mas concentremo-nos num problema que já constatei em publicações que deveriam ser cuidadas e maduras, que me surpreendeu pela negativa. O texto a português estava composto em Univers regular, enquanto o inglês estava também composto em Univers regular, no mesmo corpo e entrelinha, numa coluna diferente e paralela, mas “cinza”. Ora, o que se passa aqui? Há pouco vimos que uma impressão normal em quadricromia tem uma resolução normal de 300 dpi, e que o cinza em quadricromia se obtém pela abertura de rede da cor preta. Consequência? Temos menos pontos tintados dentro de um espaço pequeno, o que resulta em formas “ratadas”, especialmente nas formas curvas. Ou seja, as letras começam a ficar com ar de que foram mal impressas, ou que a impressão já foi desgastada, erodida. É uma corrosão do texto como consequência de uma ingenuidade técnica. Que fazer então? Temos, a meu ver, duas opções: ou seleccionamos uma cor directa mais clara, mas que é aplicada com superfície uniforme e podemos encarecer os custos, mas dá alguma vivacidade à publicação, ou utilizamos estratégias “familiares”. A Univers não possui itálicos, mas uma versão oblíqua que esteticamente não me agrada, que poderá funcionar. Porém, melhor que isto, seria utilizar um peso light, por exemplo. A definição da letra manter-se-á ainda intacta (nesta escala), teremos uma diferenciação de intensidade de mancha, e mais subtil de forma (sim, porque um bold de um typeface não é apenas dar mais espessura à forma regular, ou retirar espessura para conseguir um light. Os pesos são redesenhados e possuem diferenças estruturais.). É preciso, no entanto, também dizer que existem casos que o uso de rede poderá ser permitido: basta que exista uma maior escala, ou que se utilize um peso maior. O que é importante é que não exista degradação dos contornos, por falta de “pontos”. Outro reparo é que esta questão se aplica apenas neste processo de impressão ou semelhantes, e não acontece apenas com a cor preta, mas com o processo quadricromático e OffSet em si. Uma cor que seja rede de CMYK ou de uma cor directa pode apresentar os mesmos sintomas. De notar que as regras mudam quando falamos em cores Web e RGB: não existem redes de feixes luminosos, apenas outras combinações luminosas, por isso o cinza nunca será rede de preto, mas o mesmo valor das três cores, R6G6B6, por exemplo. Uma coisa que parece ser ‘esquecida’ é que as soma de todos os valores é inverso no dois tipos de cor: no processo aditivo, a soma de todas cores dará branco (R255G255B255), que é a luz mais intensa e que gasta mais energia; e no processo subtractivo a soma de todas as cores é o preto. (C100M100Y100K100) Para mais, o branco em CMYK é ausência de pigmento, ou seja, não existe tintagem, pelo que a cor que ficará será a do papel. Se o papel for colorido, apenas se pode imprimir branco recorrendo a um processo serigráfico, e cor do papel influencia as cores impressas.
Todo este tema é bem mais complexo, porque é sempre necessário avaliar os suportes e conhecer os processos, mas este problema de erosão tipográfica, para além de comum, parece incontornável.