30.4.09

pergaminho digital


Quando falamos de uma página hoje em dia, teremos de o fazer com cautela, porque já existem outros contextos que não o do papel. Durante muito tempo, o termo ‘página’ referia-se a uma superfície relativamente lisa e fina de papel, composta de pastas de celulose ou mistura de fibras, que já teve um parente ancestral de papiro, ou ainda de pele de animais, que servia de suporte à escrita caligráfica ou impressa. O objectivo último destes suportes escritos seria a disseminação do verbo, essencialmente como regulador dos processos comerciais, leis religiosas e mais tarde laicas. Contudo, o abrir de olhos do Renascimento levou o Homem a aspirar a fuga daquela era negra que foi a medieval, onde apenas era mero expectador forçado à resignação. O renascentista, que retirou a entidade religiosa do centro do mundo, colocando-se agora no seu lugar, tomou consciência do que o rodeava, procurando respostas para os fenómenos da Natureza que o circundavam e influenciavam, que não as que eram fruto de mera conformação, instituição dogmática e até monótona da religião. O antropocentrismo despertou então uma sede de conhecimento e partilha de informação (escrita) que provocaram uma epidemia cognitiva. A humanidade começava a deixar-se levar pela abstracção, e permitiu que a escrita lhes provocasse os pensamentos, e posteriormente os organizasse sob um código linguístico.
A necessidade de proliferação de sabedoria exigiu uma evolução de técnicas de produção de suportes e impressão, com o objectivo de disponibilizar o acesso às descobertas, pensamentos, leis, acontecimentos, que a escrita, (mais tarde aliada à gravura, ilustração ou fotografia) materializava e fazia chegar aos mais variados destinos e receptores, de forma relativamente inviolável e fiel (não nos esqueçamos das várias censuras que atravessaram a História), e que originou uma reacção em cadeia de exploração intelectual. Eis que a escrita passa agora a assumir um papel de “extensão” e amadurecimento do pensamento, mais do que um auxiliar de memória ou registo documental.
De esculpida, lapidada ou gravada, a pincelada e riscada, até à fase em que era uma face de metal tintada e pressionada que a materializava, a escrita tem simultaneamente acompanhado e provocado evoluções na forma como se apresenta ao seu leitor, quer em termos de processo de grafia, quer em termos de suporte. Há quem defenda, inclusivamente, que esta influência será recíproca, uma vez que sabendo o formato e natureza da superfície de escrita, a sintaxe, gramática, personalidade de discurso, tipo de ortografia, a expressão gráfica, e formatação serão condicionadas. Um exemplo disso será a coluna de um jornal. Cada jornalista sabe que dispõe de um determinado ‘espaço’ em caracteres e número de palavras para escrever, pelo que redige e organiza o seu texto em função disso.
Os primeiros suportes de escrita terão sido tabuletas de pedra, substituídas posteriormente por argila (a escrita cuneiforme dos Fenícios para além de existente em pedra e argila, existiu ainda em faces de ossos de animais). Mais tarde terá evoluído para o formato de khartés (volumen para os romanos), que assumia a forma de um cilindro de papiro, derivado de uma parte ‘libertada’ da planta (Liber libri, em latim, é o termo que etimologicamente daria origem ao termo ‘livro’, se bem que existe também quem defenda que a origem do termo ‘livro’ poderá estar relacionada com Byblos, nome da antiga cidade fenícia onde se comercializava o papiro, ou a Bíblia, pela sua fama enquanto livro mais reproduzido e publicado. A ideia de ‘livro’ esteve associada aos testamentos durante muito tempo.) que ia sendo desenrolado à medida que se lia. Quando existia mais que uma obra num mesmo papiro, seria designado por tomo ; desta forma, compreendemos a origem dos termos literários livro, volume e tomo. Uma vez que o papiro se tornava algo quebradiço, este viria a ser substituído pelo pergaminho (originário da cidade de Pérgamo, Ásia Menor), que mantendo o mesmo formato e sistema de leitura, trazia maior resistência, uma vez que era feito de pele de animais (todos nós já teremos a imagem mental de que as leis monárquicas seriam lidas em praça pública por um porta-voz, desenrolando um pergaminho), e que viriam a ser famosas e mesmo icónicas da era. Mais tarde, o formato de volumen daria provas de ser constrangedor, pelo que viria a ser substituído pelo codex, formato arcaico do livro como hoje o conhecemos, que reunia ‘páginas’, cozendo-as numa origem comum. Chegaram a ser de madeira e papiro, mas a sua fragilidade e baixa resistência justificaria o uso do pergaminho durante muitos anos. Em Roma, onde o códice viria a ser consolidado atingimos um patamar importante: o livro começava a ganhar a sua identidade própria, sendo associado a obra ao suporte. A Bíblia será um bom exemplo disso. Como é sabido, os códices foram durante muitos anos manuscritos por monges copistas que nos seus scriptoriums estariam encarregues de copiar, caligraficamente, obras na sua grande maioria religiosas, nas línguas ancestrais latim e grego. Os sacerdotes nessa altura eram privilegiados com a capacidade de ler, no entanto e curiosamente, existiam monges que nem sequer sabiam ler, apenas mimetizavam a grafia. Existe a possibilidade de que terão sido estes monges a construir aquilo que imageticamente conhecemos como uma biblioteca, onde prateleiras de lombadas forram paredes.
Os chineses, talvez um pouco negligenciados pela cultura ocidental, contribuiram fortemente para o seguinte passo evolutivo na história da escrita, mais precisamente nas técnicas e materiais de impressão. Bi Sheng, entre os anos 1041 e 1048 desenvolveu moldes de impressão de base cerâmica, os primeiros caracteres móveis conhecidos, é facto, mas que eram no entanto frágeis e não se revelavam eficazes para impressão em escala superior; para além disso, as tintas não eram compatíveis com o processo, sendo à base de água e por isso pouco aderente aos caracteres cerâmicos. Também o facto da linguagem chinesa ser ideográfica e não alfabética, e estar intimamente ligada à expressão gestual, fez com que o processo nunca fosse desenvolvido. Ts’ai Lun, por sua vez, terá desenvolvido aquilo que ainda hoje pode ser comparado, tanto materialmente como processualmente, ao que hoje entendemos ser papel: usando redes de pesca, trapos e posteriormente fibras vegetais (que contêm celulose), e submetendo-as a cozimento e esmagamento, obteria uma pasta que submergida e posteriormente esticada sobre moldes porosos, secaria ao ar, originando a folha de papel. Seria de uma qualidade refinada tal, que existem ainda spécimens originais nos dias de hoje bem conservados.
Seria a paixão pelos livros (manuscritos), e as suas qualidades de joalheiro que permitiram ao alemão Joannes Gutenberg o desenvolvimento dos famosos caracteres móveis de liga metálica, mais resistentes que os cerâmicos de Bi Sheng e as xilogravuras já utilizadas. Na sequência e exigência do processo, criaria a sua máquina de impressão, resultante de uma adaptação de uma prensa de uvas usada para fazer vinho, e melhoraria as tintas com recurso a um pigmento oleico de azeite, que permitiria uma melhor fixação da tinta às matrizes metálicas, obtendo uma impressão mais perfeita. Adicionando estes novos processos à tecnologia de produção de papel de Ts’ai Lun, Gutenberg semeava a esperança de livros mais acessíveis e de (mais) rápida concepção, tornando a literatura e o conhecimento mais fácil de alcançar e reproduzir (em conclusão, Gutenberg terá apenas desenvolvido e conjugado conceitos já existentes, e a sua famosa Bíblia de 42 linhas seria o fruto desta “invenção”).
Os incunabula, as primeiras folhas e livros concebidos exclusivamente pelo processo de impressão desenvolvido por Gutenberg, (ainda que nalguns se utilizasse xilogravura ou até ilustração pintada manualmente), seriam o passo evolutivo seguinte, e será apenas uma questão de tempo até as necessidades comunicacionais exigirem a ramificação para outro tipo de suportes: as newsletters (ancestrais dos jornais, ao contrário do que se possa pensar), folhetos, jornais e revistas que acompanharam e mais uma vez exigiram também processos evolutivos de impressão e suportes.
Chegados finalmente aos dias de hoje, constatamos facilmente que os media que nos fazem chegar informação utilizam os mais variados sistemas comunicacionais; não somos informados apenas através da escrita, nem através de papel, mas também formatos imagéticos e sonoros, analógicos ou digitais. Existe, inclusivamente, desenvolvida cada vez mais a ideia de papel digital, onde sobre uma folha, híbrida entre um monitor de computador e uma folha de papel, onde leds ou cristais líquidos, servem de suporte a correntes de bits e bytes de natureza electrónica, que são convertidos em imagens, formas e letras. Falamos de livros digitais, onde o que aparenta ter sido conservado são alguns elementos que se transformaram em metáforas objectuais: o formato de ‘códice’, ‘páginas’ que contêm informação, ‘letras’ impressas num monitor. Contudo, não é necessário pensar neste caso em particular. Com o fenómeno da internet, falamos de websites, ou sítios, cada um composto por ‘páginas’. Na mesma linha de pensamento, podemos comparar um website a uma revista, ou outra publicação impressa (relativamente ou não) periódica: terá normalmente uma capa com imagens e tópicos principais (um index em linguagem html), aos quais estarão atribuídos links que nos levarão a uma determinada ‘página’. Recordo que a noção de hypertext não é exclusiva do mundo digital: teve a sua génese no mundo e suportes literários. Sempre que existir, sob forma de nota de rodapé, índice propriamente dito ou bibliografia, uma referência que nos faça ‘navegar’ para fora do corpo de texto principal, será considerado um hyperlink em conceito. É natural hoje em dia existirem, e faz todos o sentido, versões online de publicações impressas periódicas tais como jornais online, porque o ojectivo de ambos é o mesmo: expandir a informação de forma mais actualizada e rapidamente possível. A rapidez do mundo moderno assim o exige. Poderemos falar de velocidade, complexidade ou reinterpretação, mas os conceitos basilares nunca deixaram de fazer parte da sua essência.
Para finalizar, outra constatação curiosa, que levou à escrita deste artigo, é que os websites aparentam ter regredido em formato: tratam-se, na realidade, de um codex de pergaminhos ou um volumen. Recordo que scroll significa pergaminho, e que ao ‘fazer o scroll’, rodando o mouse wheel ou arrastando a scrollbar, estamos a desenrolar um pergaminho, percorrendo os seus tomos. Afinal, será que evoluímos tanto assim?