9.1.09

erosão tipográfica


Em tipografia, tal como qualquer projecto em design, é muito importante considerar o medium através do qual um texto é veiculado, e o contexto processual a que este será submetido. As exigências de leitura são diferentes num website e num jornal, um cartão pessoal ou outdoor, e os processos de produção e restrições técnicas são também diferentes, e influenciam os critérios de tratamento dos textos. Em design e nas artes visuais falamos de cor, mas a cor tem duas (no mínimo) vertentes de análise: a cor-luz e a cor-pigmento. É simples de entender que a “mesma” cor em dois suportes distintos que são a página de papel e o monitor de um computador, será reproduzida de forma diferente também. Não se liga uma folha de papel à corrente eléctrica, assim como não pintamos um monitor de computador com aguarelas. Falamos de dois mundos distintos e duas linguagens distintas. No contexto de uma página web, quando queremos falar de cor diremos qualquer coisa como: “R123G025B255” ou “#c3g4d5”. RGB significa Red, Green e Blue, que são as cores que combinadas e somadas originam qualquer cor dentro do espectro visível. Isto é o processo aditivo da cor. A luz branca é composta por radiações electromagnéticas de comprimento de onda variável, que estimulam os nossos receptores sensoriais do olho, cones e bastonetes. Existem 3 tipos de cones, cada um sensível a uma “das cores luminosas RGB” e descodificam as cores através da combinação de estímulos. Os bastonetes reagem à intensidade luminosa, mas não distinguem as cores. (De notar que esta explicação é muito sumária e poderá ser dada como incorrecta pelos entendidos). A segunda designação corresponde à tradução para linguagem binária originada pelo RGB, para utilizar na Web, como o html, para ser descodificada por qualquer browser.
Por outro lado, existe a cor-pigmento, originada por subtracção de cor. De uma forma muito simples, poderei ilustrar isto utilizando o exemplo da folha de uma planta. O que lhe dá a cor verde são pequenos pigmentos verdes designados por clorofila, da mesma forma que o sangue é vermelho porque as hemácias que contém são vermelhas. O processo é semelhante ao pontilhismo. A soma e concentração de todos esses pontos de cor dão-nos a intensidade e “código” de cor final. O que é mais complexo de explicar é que, na realidade, a cor que vemos é a que não foi absorvida. Os corpos absorvem as radiações electromagnéticas que se encontram na luz branca, e as radiações que não são absorvidas são as que percebemos. E isto é muito enganador. Empiricamente poderemos determinar que, ao contrário do que o que julgamos, a cor vermelha é a menos intensa de todas, e o roxo, no outro lado do espectro é a radiação mais forte. A radiação electromagnética da luz de uma vela é bem mais fraca que a luz de um bico de gás no fogão. O que é estranho, em conclusão, é que as cores a que atribuímos o valor “frio”, química e fisicamente são as mais “quentes”. Basta pensar nos UV. No mínimo curioso, não?
No campo do design gráfico trabalha-se, diria talvez em 80% com o processo de impressão OffSet, e existem duas formas de trabalhar em OffSet: com cores directas, Pantone (mais frequente, mas não únicas), e quadricromia, ou seja, a combinação de 4 cores primárias CMYK (Cyan, Magenta, Yellow e Black), que combinadas segundo concentrações de ponto e impressas em redes desencontradas em ângulo conseguem obter uma grande variedade de cores. Existem cores Pantone que têm equivalência em CMYK, mas nunca deixa de ser aproximado. As cores directas são combinadas quimicamente para se obter uma tinta uniforme, e algumas possuem atributos de luminosidade com graus de radiação (fluorscentes) e outras com pigmentos metálicos, que obtém uma sensação de superfície metálica, quando impressos. São muito variados os processos de impressão, todos com as suas particularidades e potencialidades, mas é preciso controlo, experiência e erro, para a dominar e saber tirar o melhor partido delas.
Apesar da introdução alargada, era necessário distinguir estas noções de cor, porque vão obviamente influenciar o tratamento tipográfico e imagético. Uma “cor” que ainda não falei, mas que é uma premissa importante, é a “cor tipográfica”. Esta cor na realidade corresponde à intensidade de mancha, mais do que gama cromática propriamente dita. Esta intensidade de mancha varia naturalmente com a natureza do typeface, e da sua gama de pesos. Utilizando a Univers como exemplo, actualmente na versão 3.0 da Linotype, constatamos que esta possui pesos de muito fino a muito grosso, de 130 Basic Ultralight a 930 Basic Extrablack (de notar que a família modificou a sua nomenclatura em relação a famosa Grelha de Frutiger original, em que os limites se situavam entre 45 e 85 (formas regulares)). Não será preciso dizer que o uso destes pesos farão variar as intensidades de mancha dos textos a compôr. Nos tempos remotos da impressão renascentista, apenas se dispunha de maiúsculas, itálicos (mais tarde), versaletes, e tamanhos de corpo para criar ênfase e hierarquia. Hoje em dia podemos combinar typefaces diferentes, e cada um deles com os mais variados atributos dentro da família. Uma família extremamente completa neste campo é Thesis, de Lucas de Groot, que possui 144 formas, de sans serif, mix, serif, antiqua, smallcaps e respectivos itálicos e pesos de extralight a extrabold. Há para todos os gostos e utilidades.
Durante muito tempo, a tipografia apenas contava com duas ou três cores: preto, que ostenta a maior tradição de impressão, mais tarde o vermelho, e muito raramente o dourado, mas que se encontrava nas Incunabula, normalmente pintados à mão. Hoje em dia, a gama de possibilidades é infindável.
No entanto, o que gostaria de frisar é uma questão mais prática. Não é novidade que necessitamos do contraste forma/fundo para ler, sejam palavras ou imagens, mas que um grande contraste contribui muito para isso, razão pela qual é “mais natural” encontrar texto a negro sobre fundo branco (descartando as questões económicas, claro). Só mais recentemente se brinca e abusa dos cinzas, e de uma forma perigosa para a tipografia. O texto impresso em offset é sensível a uma questão técnica aparentemente simples, mas que já constatei ser negligenciada. A resolução de impressão normal de uma peça gráfica é de 300 dpi (imaginemos 300 pontos de tinta no espaço de um polegada) e as escalas de cinza são dadas por “redes”, o que significa que se reduz a concentração de pontos nesse espaço. Uma escala de cinza de 50% significa que obteremos 150 pontos de tinta no espaço de uma polegada, ou seja, que o branco começa a ganhar presença, e que o olho é levado a perceber menos intensidade de cor. Isto é a forma que existe que dar uma tonalidade mais “clara” a uma cor. A alternativa é seleccionar uma cor mais clara de um catálogo cromático de cor directa. E é aqui que entra a diferença. Uma cor directa (a 100%) produz uma mancha uniforme que cobre toda a sua área de impressão. Um Pantone cinza claro não é o mesmo que um cinza claro impresso em quadricromia de cor preta. A cor cinza em quadricromia utiliza redes de preto que resulta na abertura de pontos sem impressão na superfície tintada. Isto é visível nos jornais. Com um conta-linhas, ou um lupa, podemos perceber que as fotografias (a preto e branco, claro) são construídas por ‘pontilhismo’ de pontos pretos, em concentrações desiguais que produzem manchas mais ou menos fortes, dependendo dos valores cromáticos e sombras da imagem.
Mas afinal onde quero chegar com tudo isto? Vamos admitir que trabalhamos apenas com a cor preta, mais frequente no tratamento tipográfico. Se eu quiser dar mais “leveza ao texto”, e torná-lo “menos preto”, que se deve fazer?
Como já vimos existem várias formas de dar intensidade visual ao texto: a escolha do typeface propriamente dito, as “históricas” maiúsculas, itálicos, versaletes, os pesos e a escala. Aquela que é mais flagrante é a do peso. É lógico perceber que um peso black terá muito mais impacto que um peso light, mesmo com diferenças de escalas algo acentuadas. Mas o que preocupa é a má utilização da família tipográfica. Vamos imaginar que queremos compôr um texto mais ou menos extensivo no typeface Univers: seleccionaríamos um corpo entre 9 e 11pt, com uma entrelinha calculada em função do corpo, digamos 9/12pt, uma vez que não sendo serifada e tendo uma altura de x razoável, precisamos de alargar um pouco a distância entre as linhas para ajudar a leitura. Até aqui tudo bem. Agora necessitamos de dar ênfase para títulos, e usamos, por exemplo, o peso bold para contrastar. Nem precisamos de dar escala, porque é notória a diferença, mas são várias as opções. Agora coloca-se um problema. O texto é traduzido e convive no mesmo espaço – trata-se de uma publicação bilingue. Ok, precisamos de distinguir o texto um do outro, e é aqui que a coisa se complica. Mais uma vez são várias as opções, mas concentremo-nos num problema que já constatei em publicações que deveriam ser cuidadas e maduras, que me surpreendeu pela negativa. O texto a português estava composto em Univers regular, enquanto o inglês estava também composto em Univers regular, no mesmo corpo e entrelinha, numa coluna diferente e paralela, mas “cinza”. Ora, o que se passa aqui? Há pouco vimos que uma impressão normal em quadricromia tem uma resolução normal de 300 dpi, e que o cinza em quadricromia se obtém pela abertura de rede da cor preta. Consequência? Temos menos pontos tintados dentro de um espaço pequeno, o que resulta em formas “ratadas”, especialmente nas formas curvas. Ou seja, as letras começam a ficar com ar de que foram mal impressas, ou que a impressão já foi desgastada, erodida. É uma corrosão do texto como consequência de uma ingenuidade técnica. Que fazer então? Temos, a meu ver, duas opções: ou seleccionamos uma cor directa mais clara, mas que é aplicada com superfície uniforme e podemos encarecer os custos, mas dá alguma vivacidade à publicação, ou utilizamos estratégias “familiares”. A Univers não possui itálicos, mas uma versão oblíqua que esteticamente não me agrada, que poderá funcionar. Porém, melhor que isto, seria utilizar um peso light, por exemplo. A definição da letra manter-se-á ainda intacta (nesta escala), teremos uma diferenciação de intensidade de mancha, e mais subtil de forma (sim, porque um bold de um typeface não é apenas dar mais espessura à forma regular, ou retirar espessura para conseguir um light. Os pesos são redesenhados e possuem diferenças estruturais.). É preciso, no entanto, também dizer que existem casos que o uso de rede poderá ser permitido: basta que exista uma maior escala, ou que se utilize um peso maior. O que é importante é que não exista degradação dos contornos, por falta de “pontos”. Outro reparo é que esta questão se aplica apenas neste processo de impressão ou semelhantes, e não acontece apenas com a cor preta, mas com o processo quadricromático e OffSet em si. Uma cor que seja rede de CMYK ou de uma cor directa pode apresentar os mesmos sintomas. De notar que as regras mudam quando falamos em cores Web e RGB: não existem redes de feixes luminosos, apenas outras combinações luminosas, por isso o cinza nunca será rede de preto, mas o mesmo valor das três cores, R6G6B6, por exemplo. Uma coisa que parece ser ‘esquecida’ é que as soma de todos os valores é inverso no dois tipos de cor: no processo aditivo, a soma de todas cores dará branco (R255G255B255), que é a luz mais intensa e que gasta mais energia; e no processo subtractivo a soma de todas as cores é o preto. (C100M100Y100K100) Para mais, o branco em CMYK é ausência de pigmento, ou seja, não existe tintagem, pelo que a cor que ficará será a do papel. Se o papel for colorido, apenas se pode imprimir branco recorrendo a um processo serigráfico, e cor do papel influencia as cores impressas.
Todo este tema é bem mais complexo, porque é sempre necessário avaliar os suportes e conhecer os processos, mas este problema de erosão tipográfica, para além de comum, parece incontornável.