10.8.09

veneza perdida


Qualquer bom livro sobre tipografia, paginação e impressão de livros, falará inevitavelmente sobre o período do Renascimento, e dos seus berços, mais concretamente Florença e Veneza, entre os séculos XV e XVI. Este espaço temporal é considerado indiscutivelmente como o período áureo da tipografia, em que soam nomes como Nicolas Jenson, Aldo Manuzio (também conhecido como Aldus Manutius) ou Francesco Griffo. Nomes que contribuíram para a história da impressão, paginação, layout e typeface design, embora ainda não se conhecendo ou definindo os termos, com o objectivo de contribuir para a proliferação do conhecimento para além das obras eclesiásticas. Estes nomes são responsáveis por muitas das noções que hoje temos e aos quais forma atribuídas designações que no campo tipográfico são tidas como base.
Jenson, que alguns historiadores colocam a hipótese ter sido discípulo de Gutenberg, era um francês que por ordem de sua majestade Charles VII se deslocou a Mainz, Germânia (Alemanha)alegadamente para aprender a arte da impressão com caracteres móveis, que Gutenberg desenvolveu. Já em Veneza, perto de 1467, Jenson desenvolveu caracteres tipográficos com um desenho único e inovador, baseado na escrita caligráfica adoptada já com influência das minúsculas carolíngias,utilizadas na documentação do imperador, com um carácter que foge do cursivo, e às quais é atribuída a génese do alfabeto em minúsculas, como hoje o conhecemos. Este design, que se distanciava claramente da influência gótica germânica, seria chamado de estilo veneziano, que possui características que, embora de personalidade caligráfica, se começam a afirmar como independentes da escrita manual. Em 1928, Bruce Rogers desenhou, para a Monotype, aquele que seria o typeface que ressuscitava este espírito, a Centaur, que ainda hoje é utilizada, devido ao seu requinte e propriedades de legibilidade. A Legacy, de Ronald Arnholm, também teve a sua inspiração nas obras impressas por Jenson.
Mais tarde, uma pequena obra de um pensador e erudito Pietro Bembo seria um pretexto para um novo desenho de um typeface romano, que Aldo Manuzio encomendou a Francesco Griffo, que como Gutenberg e outros contemporâneos, era ourives e utilizou a sua técnica para esculpir novos tipos. Por homenagem a esta importante personagem da literatura italiana, viria a chamar-se Bembo, e mais tarde dar origem à classificação de tipo Aldino. Com a sua perna alongada do "R", este typeface é utilizado ainda com frequência, graças à adaptação da Monotype, por intermédio e supervisão de Stanley Morison, em 1929, após contemplar a obra "De Aetna" de Pietro Bembo, impressa por Manuzio em 1495. É relevante dizer que o original não possui itálicos e que o desenho que hoje acompanha o romano é um itálico baseado no trabalho de Giovanni Tagliente, em 1520. Morison editou também através da Monotype, uma dupla de typefaces (Poliphilus e Blado), baseados nas impressões da obra Hipnaerotomachia Poliphili, considerada por muitos como a obra mais bela de Manuzio e dos livros do Renascimento, mimetizando inclusivé o borrar da tinta, mas comercialmente, singrou a Bembo. Griffo viria também a ser responsável pela concepção de um typeface com propriedades cursivas, e que poupava espaço,enquadrando-se perfeitamente no novo formato de livro proposto por Aldo Manuzio, que permitia uma produção mais rápida e acessível a mais pessoas. Criava-se assim o tipo itálico, e o formato de "livro de bolso". Curioso como chegamos à conclusão que foi apenas um motivo económico que causou tão evolutivo passo, assim como a Torre de Pisa inclinada, tão famosa, que surgiu apenas porque quando se concluiu a Catedral, chegou-se à conclusão que faltava uma torre sineira.
Outra curiosidade é que os dois tipos de alfabeto não eram usados como complementares, mas como distintos. Existiam livros em romano, e livros em itálico, como tive a oportunidade de contemplar em Roma. Só mais tarde foram utilizados em conjunto, mas ainda com "maiúsculas romanas". Para mais, quando eram concebidos os tipos, a família tratava apenas as minúsculas, porque as maiúsculas eram cruzadas com tipos existentes. Seria apenas Claude Garamond que viria a "inclinar" as maiúculas, já em França, debaixo da influência de Manuzio.
A Bembo viria a popularizar-se de tal maneira que os seus tipos viajariam para França, Holanda, e inclusivé Alemanha, e serviram de inspiração para a concepção de novos typefaces, até aos dias de hoje, o que comprova a eficácia e elegância do seu desenho.
Na realidade, o pretexto que me levou a escrever este artigo, foi um motivo de decepção. Nas cidades italianas que visitei, Firenze (Florença) e Venezia (Veneza), deste legado, já nada resta que seja acessível ao público, para grande desalento meu. A Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença, projectada pelo famoso Michelangelo Buonarroti, estava encerrada ao público, pelo que não pude ver as obras que tanto ansiava. Em Veneza, nem réstia de impressão, nem museus, nem antiquários ou livreiros. Não havia sequer cuidado no uso da tipografia na sinalética, como existia nas inscrições em Roma e Florença usadas para dar o nome às ruas. Só me pude contentar com a fachada da casa de Pietro Bembo, no Rialto de Veneza, que seria a inspiração de Aldo Manuzio. É uma cidade lindíssima e encantadora, mas a bela tipografia perdeu-se nos seus canais.


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