24.8.09

doenças tipográficas


Já foi há 5 anos atrás que li a obra de Ellen Lupton "Thinking with type", e me deparei com uma espécie de DSM que explicava os sintomas que levavam ao diagnóstico de doenças tipográficas. Uma divertida análise de comportamentos que se são originados pela exposição e convivência com a tipografia. Recordando e fazendo alguns apontamentos empíricos de novos sintomas, vamos recordar estes distúrbios da saúde gráfica:

Tipofilia : Esta perturbação é caracterizada por uma fixação e fascínio excessivos pela forma das letras, que se manifesta pela exclusão de outros interesses de carácter objectual ou conceptual. A história da tipografia mostrou que pacientes que padecem deste mal acabam por falecer na maior pobreza e solidão. Outros sintomas conhecidos incluem a ICT (Identificação Compulsiva de Typefaces), havendo uma identificação compulsiva dos typefaces em todos os suportes com que o paciente se depara, levando a uma procura incessante caso não o consiga fazer.

Tipocondria : É caracterizada por uma crença e ansiedade persistentes de que foi seleccionado o typeface errado para um trabalho corrente. Este comportamento traz um comportamento paralelo de PKO (Perturbação de Kerning Óptico), que consiste no acerto compulsivo dos espaços entre as letras, como consequência da percepção distorcida no espacejamento dos caracteres.

Tipotermia, também conhecida como Politipogamia : O paciente que sofre desta perturbação é incapaz de assumir um compromisso com um único typeface, ou até 5 ou 6, como alguns médicos aconselham. Consiste no insistente uso de novos typefaces, muitas vezes sem licença adequada. Para mais, utiliza-os sem critérios e de forma excessiva, forçando e inventando motivos para o usar, sem contexto que o justifique.

Tipofobia : Trata-se do pólo oposto do uso da tipografia. Os tipofóbicos tendem a evitar o uso de letras de forma legível, utilizando dingbats, ícones ou pictogramas, como aversão à linguagem verbal. Em casos graves, são usadas bullets (balas) ou daggers (punhais). Para minorar e tentar controlar os medos e ansiedades (mas não curar), é aconselhada a posologia de pequenas doses de Times New Roman e Helvetica. Mais recentemente foi descoberto que o uso de Bembo e Univers poderão mostrar-se mais eficazes em casos dramáticos.

Tipoolismo : Estudos recentes demonstram que a tipografia poderá ser utilizada como tipefaciente, alienando os seus consumidores da matéria imagética no design gráfico. Esta perturbação induzida por intoxicação com caracteres tipográficos poderá levar a uma percepção distorcida de glifos, constatando serifas onde não existem, ou ligaduras entre letras. Em casos graves, o tipoólico utiliza typefaces fantasia pensando serem sans-serif, ou script como serif. O consumo de tipefacientes provoca dependência e em casos graves o paciente atribui todas as formas imagéticas à génese tipográfica, construindo as imagens com base nas formas das letras. O tratamento passa pelo uso de ícones e imagens em alto contraste a preto para recuperar a percepção formal, e utilizar tipos sans-serif.

Ainda no meu bom discernimento, posso afirmar e reconhecer com alguma franqueza que sofro destas doenças à excepção da tipofobia, mas que para já ainda não a um nível que precise da ajuda profissional. Um primeiro passo é reconhecer a doença. Esperemos que possa recuperar brevemente (ou não ;))



Para este artigo contei com a obra de Ellen Lupton "thinking with type" de onde surgiu a ideia original "Typographic Diseases" e um outro artigo do blog "I Love Typography" sobre "Typoholism"

10.8.09

veneza perdida


Qualquer bom livro sobre tipografia, paginação e impressão de livros, falará inevitavelmente sobre o período do Renascimento, e dos seus berços, mais concretamente Florença e Veneza, entre os séculos XV e XVI. Este espaço temporal é considerado indiscutivelmente como o período áureo da tipografia, em que soam nomes como Nicolas Jenson, Aldo Manuzio (também conhecido como Aldus Manutius) ou Francesco Griffo. Nomes que contribuíram para a história da impressão, paginação, layout e typeface design, embora ainda não se conhecendo ou definindo os termos, com o objectivo de contribuir para a proliferação do conhecimento para além das obras eclesiásticas. Estes nomes são responsáveis por muitas das noções que hoje temos e aos quais forma atribuídas designações que no campo tipográfico são tidas como base.
Jenson, que alguns historiadores colocam a hipótese ter sido discípulo de Gutenberg, era um francês que por ordem de sua majestade Charles VII se deslocou a Mainz, Germânia (Alemanha)alegadamente para aprender a arte da impressão com caracteres móveis, que Gutenberg desenvolveu. Já em Veneza, perto de 1467, Jenson desenvolveu caracteres tipográficos com um desenho único e inovador, baseado na escrita caligráfica adoptada já com influência das minúsculas carolíngias,utilizadas na documentação do imperador, com um carácter que foge do cursivo, e às quais é atribuída a génese do alfabeto em minúsculas, como hoje o conhecemos. Este design, que se distanciava claramente da influência gótica germânica, seria chamado de estilo veneziano, que possui características que, embora de personalidade caligráfica, se começam a afirmar como independentes da escrita manual. Em 1928, Bruce Rogers desenhou, para a Monotype, aquele que seria o typeface que ressuscitava este espírito, a Centaur, que ainda hoje é utilizada, devido ao seu requinte e propriedades de legibilidade. A Legacy, de Ronald Arnholm, também teve a sua inspiração nas obras impressas por Jenson.
Mais tarde, uma pequena obra de um pensador e erudito Pietro Bembo seria um pretexto para um novo desenho de um typeface romano, que Aldo Manuzio encomendou a Francesco Griffo, que como Gutenberg e outros contemporâneos, era ourives e utilizou a sua técnica para esculpir novos tipos. Por homenagem a esta importante personagem da literatura italiana, viria a chamar-se Bembo, e mais tarde dar origem à classificação de tipo Aldino. Com a sua perna alongada do "R", este typeface é utilizado ainda com frequência, graças à adaptação da Monotype, por intermédio e supervisão de Stanley Morison, em 1929, após contemplar a obra "De Aetna" de Pietro Bembo, impressa por Manuzio em 1495. É relevante dizer que o original não possui itálicos e que o desenho que hoje acompanha o romano é um itálico baseado no trabalho de Giovanni Tagliente, em 1520. Morison editou também através da Monotype, uma dupla de typefaces (Poliphilus e Blado), baseados nas impressões da obra Hipnaerotomachia Poliphili, considerada por muitos como a obra mais bela de Manuzio e dos livros do Renascimento, mimetizando inclusivé o borrar da tinta, mas comercialmente, singrou a Bembo. Griffo viria também a ser responsável pela concepção de um typeface com propriedades cursivas, e que poupava espaço,enquadrando-se perfeitamente no novo formato de livro proposto por Aldo Manuzio, que permitia uma produção mais rápida e acessível a mais pessoas. Criava-se assim o tipo itálico, e o formato de "livro de bolso". Curioso como chegamos à conclusão que foi apenas um motivo económico que causou tão evolutivo passo, assim como a Torre de Pisa inclinada, tão famosa, que surgiu apenas porque quando se concluiu a Catedral, chegou-se à conclusão que faltava uma torre sineira.
Outra curiosidade é que os dois tipos de alfabeto não eram usados como complementares, mas como distintos. Existiam livros em romano, e livros em itálico, como tive a oportunidade de contemplar em Roma. Só mais tarde foram utilizados em conjunto, mas ainda com "maiúsculas romanas". Para mais, quando eram concebidos os tipos, a família tratava apenas as minúsculas, porque as maiúsculas eram cruzadas com tipos existentes. Seria apenas Claude Garamond que viria a "inclinar" as maiúculas, já em França, debaixo da influência de Manuzio.
A Bembo viria a popularizar-se de tal maneira que os seus tipos viajariam para França, Holanda, e inclusivé Alemanha, e serviram de inspiração para a concepção de novos typefaces, até aos dias de hoje, o que comprova a eficácia e elegância do seu desenho.
Na realidade, o pretexto que me levou a escrever este artigo, foi um motivo de decepção. Nas cidades italianas que visitei, Firenze (Florença) e Venezia (Veneza), deste legado, já nada resta que seja acessível ao público, para grande desalento meu. A Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença, projectada pelo famoso Michelangelo Buonarroti, estava encerrada ao público, pelo que não pude ver as obras que tanto ansiava. Em Veneza, nem réstia de impressão, nem museus, nem antiquários ou livreiros. Não havia sequer cuidado no uso da tipografia na sinalética, como existia nas inscrições em Roma e Florença usadas para dar o nome às ruas. Só me pude contentar com a fachada da casa de Pietro Bembo, no Rialto de Veneza, que seria a inspiração de Aldo Manuzio. É uma cidade lindíssima e encantadora, mas a bela tipografia perdeu-se nos seus canais.