13.11.08

cronographia



Traduzido à letra, cronografia significa a “escrita do tempo”, mas o que despertou interesse foi o jogo de palavras que acontece quando se inverte este pensamento. “Tempo da escrita” remeteu-me imediatamente para a questão da (in)temporalidade em tipografia. Hoje em dia, a maior parte dos livros seguem as regras de paginação que no Renascimento já se utilizavam, desde o formato, à proporção da mancha de texto relacionados pelo célebre rectângulo de ouro, e consequentemente, à série de Fibonacci. É bom, no entanto, salientar que ainda que muitas dessas regras se apliquem no design editorial, os requisitos, elementos, categorias e hierarquias de informação nos tempos que correm, necessitam de outras formas de concepção de layouts que estas regras não adequam no seu todo, ou em parte. Mas antes de pensar no layout propriamente dito, existe algo a considerar: os typefaces, ou desenhos de letra. Recordo-me que se costuma afirmar que a Garamond é considerada “intemporal”, porém tenho uma observação a fazer quanto a isto. Na realidade, não é desenho de letra que é intemporal, mas as suas características de funcionalidade. Uma Garamond adequa-se perfeitamente à leitura extensiva, porque possui características indubitáveis de legibilidade e “lecturabilidade”, mas pessoalmente, nunca poderei deixar de a relacionar com o contexto histórico e estético em que foi desenhada. A tipografia, seja no typeface design ou no design editorial, e à semelhança de outros produtos e formas de comunicação humana, são o espelho das crenças, cultura e pensamento da época em que foram concebidos. A Legacy, desenhada num processo de gestação de alguns anos por Ronald Arnholm, baseada no tipos de Nicholas Jenson na juventude da era Renascentista, reflecte a alma do desenho Veneziano de então. Existirão typefaces “mais fáceis” de contextualizar, relacionando-os com ensaios de movimentos artísticos, que o denotam de forma flagrante, como será o caso dos estudos de Jan Tschichold, Herbert Bayer, Ballmer, Van Der Leck, Van Doesburg, Max Bill, Paul Renner, Rodchenko e Popova, entre outros, integrados nos movimentos artísticos e ideológicos da Bauhaus, De Stijl, Construtivismo, etc. (as foundries P22 e The Foundry editaram os famosos ‘architypes’, desenhando as fontes digitais dos typefaces idealizados por estes amantes da geometria, com base nos desenhos originais). Outros terão ganho notoriedade pela sua acção social e histórica, transformando-se numa referência cultural, e mesmo nacional. Quem não conhece o famoso London Underground, cujo typeface usado na sinalética e logótipo, desenhado pelo mestre de Eric Gill, Edward Johnston, em 1916, que ainda hoje se mantém ‘intacto’? A própria descendente do typeface de Johnston desenhada por Gill – Gill Sans – a sans serif humanista que se transformou no estereótipo das sans britânicas, usada por Cayatte na sinalética da Expo 98 e considerada como sendo das mais legíveis do mundo? Chegamos aqui a uma conclusão: os desenhos de letra são um registo histórico e simultaneamente documental dos ideais estéticos da sua era contemporânea. A tipografia é então a testemunha perfeita da História, porque encarna a própria História.
Como referi há pouco, o que temos de ter em atenção em relação ao typeface design serão as propriedades que lhe conferem legibilidade e lecturabilidade e essa é (ou deverá ser) a premissa comum entre todos eles. Isto é revelador de, como em qualquer objecto de design, existir um objectivo de funcionalidade incontornável. A partir daqui, o que irá influenciar o genótipo de um typeface apenas serão factores associados ao contexto social, sócio-económico e cultural. Valores como a moda, definindo esta como a reinvenção do conceito de belo, causarão mutações no código genético das letras, alterando o seu fenótipo, ou aspecto final, mas as bases de desenho mantêm-se. No entanto, existe também um outro factor a enunciar: o suporte. Isto tem consequências na resolução técnica do typeface design. Durante muito tempo estivémos habituados à existência das letras em suportes de papel, mas mesmo os papéis de hoje possuem propriedades diversas que influenciam a técnica de impressão. Esta relação é recíproca porque na tomada de decisão, existem typefaces mais adequados a determinados tipos de papel, da mesma forma que existem papéis que restringem a escolha de um typeface. Todavia, nem só de papel se fala que quando percorremos este longo caminho tipográfico. As letras emanciparam-se e hoje existem noutros suportes, muito para além do papel. É verdade que já foram esculpidas em cerâmica, pedra, ossos de animais, metais, etc., mas hoje percorrem distâncias milenares em artérias, veias e capilares longos que se ramificam infindavelmente, transportados por hemácias binárias. A tinta deu lugar a valores de RGB, que codificam a luz projectada num écran, que recriam ambos a tinta e o papel. A tipografia tornou-se independente do papel, ou do suporte físico. Quando questionado sobre a dependência do papel, Erik Spikermann limitou-se a responder-me que “para já, os écrans dos computadores são um papel de fraca qualidade”. Estas observações acordam-me para a realidade de que a tipografia assume muitas vertentes, e que existe em mundos muito diferentes, e que esta existência só acrescenta mais uma variável no typeface design: o medium. É por isso que é uma actividade tão difícil: porque não é objectual. A tipografia possui uma enormidade de valores, que no final, resultam em letras, letras essas que fazem parte do código que constrói a linguagem, linguagem essa que carrega um fardo pesado: o peso do conhecimento, da cultura, da arte, e de todos os atributos e produtos da Humanidade, que se propagam pelo tempo e nele sobrevivem e sobre ele testemunham.

Sem comentários:

Enviar um comentário